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A menina e o muro

04 de Janeiro de 2019 às 06:30

A menina e o muro Ilustração: Lucas Araújo

Pilar, uma garotinha de oito anos, atirou sobre o muro uma carta enrolada numa pedra. A mensagem, endereçada ao Papai Noel, continha pedidos de presentes. Era a segunda vez que a menina jogava a pedra com a carta e ainda não havia sido atendida.

O muro marcava a divisa entre México e EUA. Pilar estava do lado mexicano. Desta vez, a pedra caiu no quintal de Steve, um norte-americano de 60 anos. Ele vivia com a mulher, Moya, numa casa sem crianças. O casal tivera uma filha, mas ela havia morrido de leucemia, seis anos antes, aos cinco anos de idade.

Steve achou criativa a maneira que a autora da carta encontrou de recorrer ao acaso para se comunicar com Papai Noel. Também concluiu que, mais do que um pedido de presentes, a carta era um apelo por carinho e atenção.

Ele não sabia ler o idioma espanhol, mas identificou a assinatura. A autora devia ser uma criança, pensou. E não conseguiu ficar indiferente. A dor pela ausência da filha que Deus havia tirado do seu convívio bateu forte nessa hora. Pilar podia ser uma garotinha como a sua filha, continuou a pensar, e sentiu uma indescritível urgência de identificá-la e conseguir encontrá-la.

Steve pediu a Moya, que dominava o espanhol, para traduzir a carta. Calculou a direção de origem da pedra e foi assim que identificou a região onde provavelmente vivia a garotinha mexicana.

Navegando nas redes sociais, recorreu a amigos e a quem mais pudesse ajudá-lo a encontrar a menina. Como não tinha nenhuma referência dela, além do nome, os esforços foram inúteis.

Então, transpôs o muro e do lado mexicano fez buscas em ruas, becos, bairros inteiros. Programou anúncios numa emissora de rádio e aguardou os resultados. No terceiro dia, recebeu a ligação de um radialista que disse ter encontrado Pilar e lhe forneceu o endereço.

Agora, pela segunda vez, Steve transpôs o muro de novo. Estava ansioso como um adolescente diante de um desafio superior. Representar Papai Noel não era tarefa para qualquer um.

Para facilitar as coisas, solicitou a ajuda de Moya. E lá foi o casal para o lugar onde a menina vivia. Levaram dois carrinhos, duas bonecas e dois panetones.

Adicionaram bombons. Quando chegaram à casa onde Pilar vivia, numa rua de um bairro periférico, se depararam com uma história de fuga e luta pela sobrevivência e entenderam a quantidade de presentes solicitada: Pilar tinha uma irmã e mais dois irmãos, todos mais novos, e um brinquedo era destinado a cada um. Os panetones faziam parte do sonho de curtir um dos sabores do Natal.

Essa família tinha origem em uma grande caravana que, durante meses, fugira da fome e da violência em Honduras para tentar a vida nos EUA. Driblaram fiscalizações de fronteiras, sofreram ameaças de coiotes, expuseram-se aos riscos de doenças, tiveram muito medo nos caminhos percorridos. E foram barrados quando chegaram ao muro que separava uma existência de horrores da promessa de vida digna no país de Donald Trump. Agora, não sabiam o que fazer nem que rumo tomar. Estavam abrigados provisoriamente na casa humilde de uma família de mexicanos que tivera compaixão de tanto sofrimento.

Steve e Moya disseram a Pilar que eram ajudantes de Papai Noel. Além dos presentes, proporcionaram um almoço de Natal para a família. Nos momentos em que durou o encontro, a alegria foi geral. Pilar, os irmãos e os seus pais não acreditavam que fossem merecedores de tão especial atenção por parte do casal desconhecido. Religiosos, interpretaram a presença dos visitantes como promessa divina de que as coisas podiam melhorar.

Quando voltou para casa, Steve estava feliz por ter garantido as emoções de Natal para Pilar e sua família. Mas doía-lhe o coração. Sofria com a constatação de que, passadas as comemorações do nascimento de Jesus Cristo, o destino da garotinha continuaria marcado pela incerteza da longa jornada interrompida pelo muro.