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A indiferença do mundo

17 de Agosto de 2018 às 11:17

O som triste e arrebatador criado pela banda R.E.M., uma das maiores da história do rock, irrompe como trilha sonora da peça publicitária de uma campanha da ONG Médicos Sem Fronteiras. Em perfeita sintonia com a música, as imagens são fortes. Produzem o efeito de um tapa na cara, um soco no estômago, uma sacudida na indiferença do mundo.

Impossível não ficar parado por 2 minutos e 7 segundos, o tempo de duração do vídeo. As legendas informam que 28 mil profissionais da ONG Médicos sem Fronteiras salvam vidas no atendimento a vítimas de fome, catástrofes, guerras, epidemias. E isso é só o começo.

As imagens em cortes rápidos vão muito além. Os cenários são de regiões esquecidas da África. Crianças doentes, desnutridas, olhares perdidos, apelos, lágrimas, desamparo, expressões de dor. Os adultos traduzem o sofrimento em rostos emoldurados pela tristeza. E isso é só um aspecto da história.

Médicos, enfermeiros, auxiliares, viajam por rios, estradas rurais, trechos alagados. Chegam aos lugares mais distantes e miseráveis. Além das dificuldades do terreno, mobilizam-se pela coragem. Muitas dessas regiões são devastadas por conflitos regionais de governos e opositores corruptos, que disputam o legado do abandono. O risco de sequestro e morte é iminente para os profissionais de saúde. E essa é só mais uma parte do drama. O vídeo mostra que uma coisa é chegar às áreas arrasadas pelas catástrofes. Outra coisa é constatar que a tragédia é muito superior ao espírito de solidariedade. Tudo é precário e improvisado. Faltam tratamento de água e esgoto. Falta comida. Faltam materiais básicos para curativos. Faltam remédios. Falta consolo. E a sensação é dolorida demais.

Desolados com as carências e o sentimento de impotência diante do caos humanitário, médicos encostam-se em paredes, como se com esses gestos buscassem amparo para não cair, e os seus rostos se fecham em desespero. Pois eles também, os médicos, tornam-se vítimas da calamidade. E isso ainda não é tudo.

Este é um momento em que a publicidade, como numa compensação para a sua tradicional natureza elitista, entrega o seu poder de comunicação e a sua criatividade a serviço de uma causa humanitária de extrema urgência e importância. O espectador sabe que a tragédia existe e se multiplica em muitas regiões do planeta, mas essa não é a novidade. O novo em tudo isso é o incômodo que o invade no conforto do sofá com almofada. Há um mundo em pedaços lá fora e isso não é uma matéria natural como o ar, a água, o fogo. E essa é só uma parte do problema.

É hora de reconhecer que o mesmo mundo preocupado com o meio ambiente e o controle politicamente correto das relações sociais ignora as tragédias que fazem milhões de vítimas nas regiões mais desprezadas do planeta. É para fugir de lugares como aqueles exibidos no vídeo que muita gente arrisca a vida em travessias perigosas de oceanos, rios, pântanos. E são barradas por muros, cercas, leis, discursos carregados de ódio. E esse é só mais um capítulo dessa história terrível.

No ano passado, o Congresso dos EUA aprovou US$ 700 bilhões para gastos militares em 2018. Isso é mais do que a solicitação feita por Donald Trump. O valor total superou em 15% o aprovado em 2016, último ano do governo de Barack Obama, e em US$ 26 bilhões (ou 4%) o orçamento solicitado inicialmente por Trump. E a campanha do Médico Sem Fronteiras pede ao espectador a doação de apenas R$ 1 por dia ou R$ 30 ao mês para arcar com os custos do trabalho humanitário. Essa desproporção também é outra realidade digna de um soco no estômago.

Não, amigo leitor, não se sinta culpado. Aos governos do mundo, que têm todo o poder, cabe a responsabilidade de buscar a solução para as crises humanitárias. E habitualmente eles agem na contramão das nossas vontades, mesmo quando se dizem democráticos.

Certamente, ainda no conforto do sofá, você também fica incomodado quando assiste ao vídeo da ONG Médico Sem Fronteiras. O conteúdo agrega a força do cinema com a contundência de uma denúncia histórica que cumpre a função de subverter nossa indiferença. E isso é só o começo de uma longa história.