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A cuidadora de idosos

23 de Agosto de 2019 às 00:01

A cuidadora de idosos Crédito da foto: Arte Lucas Araújo

Carlos Araújo - [email protected]

Todos os dias jantavam juntos, isolados, num canto do refeitório da fábrica. Eram os dois remanescentes de um grupo de dez colegas de trabalho. Os outros oito tinham sido demitidos. André e Osvaldo, os que sobreviveram, tinham saudades da companhia dos colegas dispensados. Colegas, não. Eram todos amigos. Muitos anos jantando em grupo e se reunindo nos horários do café na empresa fizeram deles algo semelhante a uma confraria de camaradagem.

Cada um tinha um perfil diferente. Havia entre eles desde colecionador de insetos a especialista em churrasco. Para que todos pudessem ficar juntos na hora do jantar, usavam um mesão no fundo do refeitório. O tempo de 30 a 40 minutos que ficavam à mesa era uma verdadeira confraternização.

E eis que o grupo se dissolveu com as demissões causadas pela crise econômica. Cada despedida de um colega era um sofrimento emocional para quem sobrevivia no emprego.

André e Osvaldo começaram a achar que o problema era o local onde jantavam. Pura superstição, mas não é bom duvidar dessas coisas, pensavam. Por cautela, se transferiram para uma mesa comum de quatro lugares. Acharam que assim escapariam da carga de azar do mesão.

Foi quando se sentiram incomodados com os dois lugares vazios na nova mesa. Ficavam à espera de outros colegas de trabalho, que poderiam ocupar os dois espaços que sobravam. Mas eles não tomavam a iniciativa de se aproximar. Os dois chegaram a chamar os colegas de mesas vizinhas, mas os convites eram recusados.

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Convidaram especialmente duas colegas lindas. Indiferentes, elas se dirigiram a outra mesa. André e Osvaldo não se conformavam com tanto desprezo. Começaram a achar que não atraíam os outros colegas para a mesa porque eles temiam a superstição do mesão. Agora estavam reduzidos a apenas dois do antigo grupo de dez e isso era visto como uma premonição. Ninguém queria fazer parte.

Ou será que o que afastava os colegas era a conversa? André e Osvaldo falavam de literatura, filosofia, política. Recordavam livros de Borges, Cortázar, Hemingway. Filmes de Felini, Bergman, Antonioni. Incluíam nas conversas as suas mulheres, os filhos, os gatos e os cachorros.

Deve ser isso, pensavam. Precisamos mudar de assunto. Quem sabe se entrassem na linguagem das redes sociais, se priorizassem as fofocas e a vida das celebridades. Coisas leves, descartáveis. Deviam mudar o foco, portanto.

E um dia, para a surpresa e encantamento dos dois amigos, a nova estagiária da fábrica sentou-se à mesa deles sem pedir licença. Mais do que caminhando, ela veio desfilando, toda faceira, leve e solta, sorriso aberto, olhar cortante. Osvaldo se conteve desta vez. Nem elogiou a beleza dela. Poderia “queimar o filme” se ousasse qualquer articulação nesse sentido.

Foi uma conversa agradável demais durante o tempo que durou o jantar. A presença da estagiária encheu a mesa de colorido, leveza, diversão. Era a juventude da garota de 20 anos, com todo o seu brilho e poder, ante os mais de 50 anos frustrados de André e Osvaldo.

A estagiária se levantou antes deles e deixou um grande vazio na mesa.

Em outros tempos, os dois amigos teriam se iludido com vislumbres de poesia realçados pela presença da garota. Agora, reprimidos pelo peso da idade, eles não tinham mais esse delírio, mesmo que se sentissem perturbados diante da beleza da moça.

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Estavam conscientes da realidade cruel. Não havia dúvida sobre a distância entre a graça dos 20 anos da estagiária e as desilusões de dois amigos de meia-idade. André e Osvaldo se renderam à constatação de que ela nem percebeu o rastro de alegria que irradiou enquanto esteve com eles e o deslocamento de ar que provocou com a sua saída da mesa.

-- Não tenhamos dúvida: ela veio até nós com a generosidade de uma cuidadora de idosos, apenas isso -- disseram os dois amigos.

E caíram na gargalhada. Ao menos podiam rir da situação. Mas estavam frustrados com a juventude perdida. E se sentiam resignados, prostrados, desconstruídos, perante a escrita imperfeita do destino.