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2051

05 de Julho de 2019 às 00:01

2051 Crédito da foto: Arte Lucas Araújo

Carlos Araújo - [email protected] .br

Numa cidade do sudeste, no fim da tarde de terça-feira, João Trwel atravessou a rua, percorreu o espaço do estacionamento vazio, empurrou a porta e entrou na livraria. Eram ele e uma única vendedora. Não havia mais ninguém no ambiente de corredores e prateleiras de livros. Era o último dia de abertura da única loja física de livraria existente no mundo.

João sentiu algo estranho. Estava triste e esse espírito tinha a ver com a sensação de despedida. Não havia mais leitores de publicações impressas. Todos tinham migrado para as plataformas digitais. João era o único ser que insistia na leitura de conteúdos impressos, mas sozinho era impossível sustentar um mercado. Os jornais impressos não existiam mais. Nesse ritmo, o mercado também previu o fim definitivo das livrarias. Esse dia tinha chegado agora.

João curtia um vazio indescritível. Queria comprar os últimos livros, dois ou três volumes, talvez cinco, ou sete. Comprar livros era um hábito desde a infância. Assim como fazem os acumuladores compulsivos, ele juntava livros. Tinha quase sete mil volumes em casa. Eram as melhores obras, os melhores autores. Literatura e filosofia. Tudo sobre Kafka, Faulkner, Nietzsche, os autores mais queridos. Obras de Poe, Lovecraft, Lautréamont. Tinha em casa os autores e obras em diversidade e volume maiores do que podia encontrar em qualquer livraria. Leitura garantida para muitos anos.

Pegou dois livros de Hannah Arendt, “Homens em tempos sombrios” e “As origens do totalitarismo”. Viu uma nova edição de “É isto um homem?”, de Primo Levi. E tirou da prateleira uma edição em capa dura de “O alienista”, de Machado de Assis. Incluiu no conjunto o célebre “1984”, de George Orwell, e “O conto da aia”, de Margaret Atwood.

Gostava de livros de ficção e filosofia distópicos porque eles lançavam alguma luz sobre os labirintos que levaram a humanidade à perdição nos últimos quarenta anos. O mundo tinha se transformado numa imensa Itaguaí, o ambiente da narrativa de “O alienista”. Machado de Assis era um visionário. E o sistema de vigilância nas mãos do poder para oprimir os cidadãos, criado por Orwel no seu livro clássico, era uma realidade explosiva.

Para quebrar o silêncio, João tentou puxar conversa com a vendedora a propósito do último suspiro da livraria. Mas ela o ignorou. As palavras são inúteis diante das mortes anunciadas.

Os leitores rejeitaram os livros impressos porque agora só querem animações eletrônicas, João pensou. A modernização gráfica foi insuficiente para competir com os celulares e os tablets. Ao eliminar tudo o que é de papel, a tecnologia executou o que Hitler não conseguiu com a queima de livros em praça pública, pensou.

João se dirigiu ao caixa com os livros nas mãos. A vendedora fez as contas, ele pagou a despesa com cartão de débito e caminhou para a saída. Não olhou para trás, como faria num setor de embarque. Entrou como parte da estatística da ruína e desolação do novo mundo, já que era o último cliente da livraria e o último comprador de livro impresso do mundo.