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Tragédia previsível

07 de Agosto de 2020 às 00:01

Poucas imagens foram tão divulgadas nos últimos anos como as captadas nas explosões em Beirute, no Líbano, uma tragédia gigantesca que ocorreu justamente quando aquele país atravessa uma forte crise econômica e sanitária, por conta da pandemia da Covid-19. As autoridades libanesas ainda trabalham na contagem de mortos provocados pelas explosões ao mesmo tempo que recorrem à ajuda internacional para poder cuidar dos milhares de feridos em consequência das explosões registradas na região portuária da cidade. As últimas informações dão conta -- e esses números crescem a cada dia -- que pelo menos 130 pessoas morreram e 5 mil ficaram feridas em consequência direta da explosão e do gigantesco deslocamento de ar que se seguiu. Os primeiros números revelam que ao menos 300 mil pessoas perderam suas casas, o que causou danos calculados entre 3 bilhões e 5 bilhões de dólares, segundo as autoridades locais. O sistema de saúde de Beirute, já comprometido com os pacientes de Covid-19, simplesmente entrou em colapso e não consegue atender aos feridos.

Como se trata de uma região que vive constante clima de conflito, primeiramente pensou-se que se tratava de um atentado terrorista ou algum tipo de ataque a bomba, teoria rapidamente afastada pelas primeiras investigações. Em dezenas de vídeos divulgados por todo mundo, é possível perceber que foram duas explosões. Uma explosão forte, seguida por outra, devastadora, que causou uma onda de choque e deslocamento de ar responsável pelos danos em toda a cidade. Por trás da explosão que arruinou a cidade há, entretanto, toda uma teia que mescla burocracia, corrupção e irresponsabilidade.

A carga de 2.700 toneladas de nitrato de amônio estava no porto, um local estratégico para aquele país, desde 2013. A substância é uma espécie de sal branco e inodoro, usado principalmente como fertilizante em forma de grânulos, facilmente solúveis em água e que agricultores compram em grandes quantidades. Essa substância não é explosiva em si, mas em doses médias e altas e na presença de substâncias combustíveis, como óleo, ou fontes de intensas de calor, pode causar fortes explosões. Grupos terroristas já a utilizaram em vários atentados. A estocagem dessa substância deve seguir normas rigorosas de isolamento de líquidos inflamáveis ou corrosivos, sólidos inflamáveis ou substâncias que emitam calor. A carga de nitrato de amônio chegou ao porto de Beirute em setembro de 2013, a bordo de um navio de propriedade russa com uma bandeira da Moldávia que estava indo para Moçambique. Com problemas técnicos, a embarcação foi impedida de seguir viagem e abandonada pela empresa e tripulação. A carga, perigosíssima, foi colocada em um galpão e desde então os responsáveis pelo porto vinham tentando junto à Justiça libanesa uma solução para o caso. Foram vários ofícios que ficaram sem resposta até que a tragédia aconteceu. Aparentemente um depósito de fogos de artifício das proximidades explodiu -- a primeira explosão que se vê nos vídeos -- e em seguida o depósito foi pelos ares.

Cargas perigosas precisam de cuidados redobrados e como mandam as normas básicas de segurança, não podem ficar depositadas em locais densamente habitados ou estratégicos. No caso da carga de nitrato de amônio, todas as normas foram desrespeitadas. A carga ficou junto ao principal porto de um país que depende do comércio exterior e junto à principal rodovia do país. Ficou próxima a zonas densamente habitadas em condições climáticas inadequadas. Era uma tragédia sem data marcada para acontecer.

A região de Sorocaba, guardadas as devidas proporções, teve um caso semelhante. Em 1948, um vagão carregado com várias toneladas de dinamite ficou estacionado em um pátio de manobras da Estrada de Ferro Sorocabana em Cerquilho, então um distrito de Tietê. O vagão carregado deveria ficar estacionado no local por apenas 12 horas, mas não se sabe por que motivo, resolveram deixar a carga em Cerquilho por mais 48 horas, apesar dos apelos do chefe da estação, que tinha noção do perigo que aquele vagão representava. Na tarde de 30 de janeiro de 1948 o vagão explodiu e destruiu dezenas de casas do distrito num raio de 150 metros e matou quatro pessoas. A perícia descobriu que junto com a carga de dinamite havia outra, de fogos de artifício, que explodiu devido ao intenso calor do verão.

Assim como a burocracia e a negligência deixaram que uma carga altamente perigosa ficasse guardada inadequadamente em Beirute, situação semelhante pode estar ocorrendo no Brasil ou até em nossa região. São estoques de explosivos de pedreiras e empresa mineradoras, fábricas de fogos de artifício ou mesmo de fertilizantes, muito utilizados pela agricultura. Por esse motivo é importante fiscalização rigorosa e constante sobre o armazenamento de explosivos e materiais potencialmente perigosos. Se um trabalho eficiente tivesse acontecido no Líbano, uma tragédia teria sido evitada esta semana.