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Solidariedade seletiva

13 de Outubro de 2018 às 07:39

O insuspeito site da BBC Brasil trouxe dias atrás uma comovente reportagem sobre uma cientista forense colombiana, de 64 anos, residente na comunidade de La Guajira, que há décadas se dedica a oferecer um enterro digno a quem não pode pagar pelo sepultamento. Ela criou com seus próprios recursos um pequeno cemitério no norte da Colômbia. De uns tempos para cá, ela não enterra somente colombianos pobres. Desde o ano passado, 45 pessoas morreram no povoado e ela sepultou 30, quase todos imigrantes venezuelanos que fugiram da crise econômica em seu país e morreram na miséria na Colômbia. Ela chegou a enterrar muitas crianças, vítimas da desnutrição. A Organização das Nações Unidas (ONU) estima um total de dois milhões que deixaram o país, muitos em situação vulnerável. O êxodo de venezuelanos já é um dos maiores movimentos populacionais em massa da história da América Latina. A Venezuela tem uma das maiores reservas de petróleo e gás do planeta, mas a corrupção e a má administração levaram o país a uma crise econômica, onde há escassez absoluta de alimentos e remédios e uma inflação que poderá chegar, segundo o FMI, a 1.000.000% este ano.

A Venezuela de Chaves e Maduro criou fortes vínculos com governos e partidos políticos na América Latina. Essa proximidade ideológica, principalmente com o Partido dos Trabalhadores do Brasil, rendeu ao longo dos governos petistas financiamentos para obras na Venezuela que chegaram a R$ 11 bilhões, uma dívida que o banco está tendo dificuldades para receber. Em geral foram financiamentos de obras de infraestrutura realizadas pelas conhecidas construtoras brasileiras, as mesmas que financiaram o partido por vários anos.

Durante toda campanha do primeiro turno, não ouvimos dos candidatos alinhados à esquerda qualquer referência à crise venezuelana, mesmo com o fluxo gigantesco de refugiados da crise política e econômica atravessando a fronteiras do Brasil, chegando a cidades sem infraestrutura para atender esse grande número de imigrantes que necessita de todo tipo de ajuda.

Dias atrás, o vereador venezuelano oposicionista Fernando Albán foi detido ao retornar de uma viagem aos Estados Unidos e levado à sede do Serviço Bolivariano de Inteligência (Sebin), um conhecido centro da polícia política venezuelana e nunca mais foi visto com vida. Pela versão oficial, o vereador se jogou de uma janela de um banheiro do 10º andar do Sebin, o que causou estranheza, pois as janelas daquele local, usado para interrogatórios e supostamente torturas, vivem sempre fechadas. Mais tarde, as autoridades policiais reformularam a história, informando que ele pediu para ir ao banheiro, mas se atirou de uma janela panorâmica.

As circunstâncias estranhas, para dizer o mínimo, da morte do vereador levaram a ONU, a União Europeia e um grande número de países, inclusive o Brasil, a cobrar uma investigação transparente para o caso. Essa morte misteriosa e suspeitíssima nos remete ao caso do jornalista saudita Jamal Khashoggi, que desapareceu depois de entrar no consulado da Arábia Saudita em Istambul há dez dias. Opositor ao regime saudita, Khashoggi, que escrevia para o Washington Post como correspondente naquela região, entrou no consulado de seu país no dia 2 de outubro para obter documentos oficiais de divórcio. Há gravações em vídeo de sua entrada na representação diplomática, mas não há registros de sua saída. O governo turco, segundo o Post, teria informado os Estados Unidos reservadamente que tem gravações do momento em que o jornalista teria sido preso por uma equipe de segurança saudita e depois assassinado. Regimes totalitários têm métodos semelhantes.

Diante da afinidade ideológica que une o Partido dos Trabalhadores e parte de seus aliados com o governo venezuelano, o mínimo que se espera é que seu candidato à Presidência junte-se ao Alto Comissariado dos Direitos Humanos da ONU e exija uma investigação transparente da morte do vereador em Caracas. Melhor ainda, em vez de ocultar essa proximidade com governos autoritários durante a campanha eleitoral, deveria afastar-se de um regime acusado pela própria ONU de graves violações dos direitos humanos. Quem acusa o adversário de radical e de pregar a violência não pode compactuar com um regime que se mantém usando a violência para subjugar seu próprio povo.