Prova de resistência
Entender e mensurar a cadeia de impactos produzidos pela pandemia do novo coronavírus na vida de todo o planeta certamente ainda serão temas de estudos por muitos anos. No âmbito dos esportes, por exemplo, uma noção da dimensão dos danos é o provisório adiamento dos Jogos Olímpicos de Tóquio deste ano para 2021. O nível de incertezas acerca da trajetória da Covid-19 -- pouco mais de sete meses após o seu início -- pode ser aferido pelo fato de o Comitê Olímpico Internacional (COI) continuar avaliando a possibilidade de transformar o inédito retardamento da competição mais importante do calendário desportivo mundial -- ícone da harmonia entre as nações em cancelamento.
Mesmo com um ano de atraso, a realização das Olimpíadas de 2020 -- o nome será mantido -- é encarada como um emblema da vitória da raça humana. Uma prova do poder de organização e de harmonização da sociedade para superar obstáculos. A adversidade, neste caso, se apresenta na forma de um organismo acelular responsável pela contaminação de 10 milhões de pessoas e pela extinção de meio milhão de vidas em apenas 200 dias. O contrário -- o cancelamento dos jogos --, por sua vez, significará a repetição do fracasso fragoroso registrado apenas três vezes durante os 124 anos das Olimpíadas na era moderna.
Desde que o nobre francês Pierre de Frédy, nome de batismo do Barão de Coubertin --, no final do século 19, em meio à efervescência da competitividade política e industrial --, instituiu o COI com o objetivo de criar uma atmosfera amistosa entre os países por meio dos esportes, somente as duas guerras mundiais haviam sido obstáculos suficientemente fortes para interferir na continuidade dos Jogos Olímpicos.
Disputados quadrienalmente a partir de 1896, em Atenas, e reeditando o ideal de confraternização dos antigos jogos gregos, a primeira interrupção da nova versão da disputa ocorreu em 1916, naqueles que seriam os Jogos de Berlim. Apesar do entusiasmo do kaiser Guilherme -- último imperador da Alemanha --, e da construção de um moderno estádio especialmente para o evento, o enfrentamento bélico entre as potências europeias, iniciado dois anos antes, tornou muito perigoso o deslocamento dos atletas. Houve a negociação de uma trégua de duas semanas para a realização da disputa. No entanto, não só as tratativas foram mal sucedidas, como o próprio presidente do COI -- ainda o barão de Coubertin --, foi convocado a lutar pelo exército da França.
O calendário olímpico ocorreu normalmente até 1936. A edição seguinte dos jogos, em 1940, seria, por coincidência, em Tóquio. No entanto, por conta da eclosão da guerra sino-japonesa, o COI decidiu transferiu o status de cidade-sede para Helsinque, na Finlândia. Na sequência, o alastramento do conflito para a maior parte do planeta acabou por provocar o cancelamento definitivo da disputa. Quatro anos depois, a guerra se generalizara e, em consequência, os Jogos de Londres tiveram de ser igualmente cancelados.
Durante as oito décadas seguintes, apesar de algumas ameaças, as Olimpíadas seguiram ilesas. Neste período, o ideal desportivo superou pelo menos dois perigos reais. Os fatos registrados nos Jogos de Munique (Alemanha), em 1972, foram, seguramente, os mais graves. O evento entrou para a história em razão da ação terrorista que o grupo palestino Setembro Negro promoveu dentro da Vila Olímpica contra a delegação de atletas de Israel. Tal ação começou com um plano de sequestro e terminou no massacre de onze atletas judeus.
Por conta da chamada Guerra Fria, houve boicotes nos Jogos de Moscou, em 1980, e na Olimpíada de Los Angeles (1984). No primeiro caso, os norte-americanos e 61 países aliados deixaram de enviar comitivas à capital soviética em protesto pela invasão do Afeganistão. Na edição seguinte da competição, foi a vez dos partidários do bloco socialista deixarem de comparecer ao evento.
O primeiro adiamento da história dos jogos se deu no fatídico 23 de março de 2020. Apesar da mobilização mundial na tentativa de controlar a pandemia do novo coronavírus, o COI, a Prefeitura de Tóquio e os organizadores da competição chegaram à conclusão de que seria muito arriscado realizar os jogos antes do desenvolvimento de formas efetivas e confiáveis de conter a doença. Não havia garantias à integridade de atletas, comissões técnicas e dos milhões de turistas que, certamente, invadiriam a capital japonesa para assistir aos jogos. Como medida paliativa foi adotada a transferência da competição para o ano que vem. Porém, a efetivação dessa alternativa ainda depende da evolução da pandemia e, principalmente, da produção de uma vacina capaz de detê-la. Aos cidadãos cabe, então, se protegerem por meio do respeito aos protocolos sanitários instituídos pelas autoridades da saúde. Se é verdade que as Olimpíadas retratam o momento e a evolução da humanidade, chegou a hora de descobrir o grau que conseguimos alcançar.