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Lapso de memória

25 de Outubro de 2020 às 00:01

“Um povo sem memória é um povo sem futuro.” Reeditada por inúmeros pensadores, cientistas e historiadores para se adequar a circunstâncias, lugares e momentos distintos, a frase atribuída originalmente ao filósofo espanhol George Santayana (1863 - 1952) continua atual e, principalmente, universal. Lamentavelmente, os efeitos nocivos da desmemorização generalizada estão presentes também no cotidiano sorocabano, onde a insensibilidade governamental condena ao esquecimento notáveis realizações e permite a deterioração de patrimônios imensuráveis. A lista da herança cultural ameaçada de extinção, que já inclui vários bens tombados, como a Oficina Cultural Grande Otelo, o Matadouro Municipal, a chácara do Moinho Velho, o Casarão de Brigadeiro Tobias, as Oficinas da Estrada de Ferro Sorocabana e a Locomotiva Número 10, está prestes a ser engrossada pelo Aeroclube de Sorocaba.

Ao contrário do que possa parecer a alguns cidadãos -- incluindo agentes políticos e mandatários -- alheios à importância da preservação das conquistas alcançadas -- muitas vezes com suor e lágrimas -- pelas gerações que os precederam, manter viva a memória não é mero sentimentalismo ou “pieguice”, como classificam alguns. A História -- a ciência, portanto com H maiúsculo -- se encarrega de provar na prática a teoria de que no acúmulo dos conhecimentos reside a base da evolução. O contrário equivaleria a dizer, por exemplo, que cada descendência precisaria aprender a domar o fogo ou descobrir as técnicas agrícolas. Em termos práticos, quando se diz que as crianças são o futuro do País, a nossa esperança e desejo de dias mais prósperos e justos, precisamos considerar que para haver avanços e/ou mudanças é necessário conhecer o que foi feito no passado, sob pena de entrarmos na eterna roda-viva da repetição de erros ou investir tempo precioso reinventando a roda.

Em Sorocaba, um desses lapsos de memória está ocorrendo neste exato instante, graças à suspensão das atividades do Aeroclube. Por conta de questões burocráticas, uma das mais tradicionais escolas de aviação do Brasil permanece fechada há mais de 22 meses. No início de janeiro de 2019, a Prefeitura proibiu à instituição a continuidade do uso dos prédios e espaços anexos ao Aeroporto Estadual Bertram Luiz Leupolz, por falta de renovação da concessão da área pública que ocupava. Depois, em julho deste ano, a administração municipal decidiu ceder parte do local à Polícia Militar. Não obstante a necessidade de atender à legislação -- afinal, toda a área pertencente ao Município -- e a importância de proporcionar acomodações adequadas à instituição responsável pela segurança da população, está evidente que as tratativas para a solução do problema caminha de maneira desproporcionalmente morosa, em detrimento de toda a sociedade, que perde contato com um dos triunfos mais significativos do passado recente.

Felizmente, algumas iniciativas em curso tentam reparar a apatia governamental. Em uma delas, há menos de duas semanas, o Ministério Público do Estado de São Paulo (MP-SP), por meio do promotor Jorge Alberto de Oliveira Marum, protocolou na Justiça uma ação civil pública solicitando o reconhecimento do valor cultural e histórico do Aeroclube de Sorocaba. A ação também pede que a Prefeitura de Sorocaba revogue o decreto de cessão do local à PM.

Enquanto aguarda os resultados dos procedimentos que correm no âmbito jurídico, o Cruzeiro do Sul, cumpre o seu papel de manter viva na memória sorocabana -- sobretudo das crianças e jovens -- o valor histórico e prático do Aeroclube de Sorocaba. Em uma série de cinco reportagens semanais, publicadas a partir do início de setembro, o jornal secular relatou toda a trajetória -- retratada em suas páginas ao longo das décadas -- do emblemático campo de pouso que sediou o Aeroclube e deu origem ao Aeroporto Estadual de Sorocaba, assim como serviu de berço para o maior centro de aviação executiva da América do Sul, com suas oficinas especializadas de altíssimo nível técnico. Na última sexta-feira (23), o ciclo teve prosseguimento com mais uma matéria especial e duas lives destacando a passagem do Dia do Aviador, ou seja, a história humana por trás da história da entidade.

Criado há 78 anos -- o voo inaugural ocorreu em maio de 1942 -- por um grupo de empresários incentivados pelo jornalista Assis Chateaubriand, o pioneiro Aeroclube de Sorocaba sobreviveu a crises para se tornar uma referência para toda a América do Sul. Entre os apoiadores estavam pessoas de destaque na história da cidade, como o bispo Dom José Carlos Aguirre, os empresários Antônio Pereira Ignácio, cofundador do Grupo Votorantim, Severino Pereira da Silva, criador da Companhia Nacional de Estamparia (Ciane), e Luiz Pinto Thomaz, fundador da Siderúrgica Nossa Senhora Aparecida.

Desde os primórdios, apesar das dificuldades, o Aeroclube de Sorocaba chamou a atenção pelo vanguardismo e bons resultados. Seu primeiro hangar, projetado pelo engenheiro Alexandre Albuquerque, da Escola Politécnica da USP, possuía o maior vão livre do Brasil na época -- eram “extraordinários” 25 metros. Ademais, entre as centenas de alunos de várias partes do País que passaram pelo curso de pilotagem de Sorocaba estão figuras lendárias, como o sanroquese Alberto Bertelli, mais famoso piloto de acrobacia aérea de todos os tempos, e o tenente-brigadeiro Cherubim Rosa Filho, sorocabano que chefiou o Comando-Geral do Ar e o Estado-Maior da Aeronáutica, além de presidir o Superior Tribunal Militar.

São legados dessa magnitude e exemplos capazes de alicerçar o futuro de inúmeros sorocabanos -- e da própria cidade e região -- que estão em jogo com a extinção do Aeroclube de Sorocaba. A boa notícia é que ainda há tempo para salvá-lo. Um caminho para isso é a mobilização da sociedade. Então, com a palavra, todos nós!