Garimpo macabro
Oito meses depois que foi denunciada a existência de um garimpo de peças metálicas no terreno onde funcionou a fábrica de baterias automotivas Saturnia, no bairro Iporanga 1, zona leste de Sorocaba, a reportagem do Cruzeiro do Sul flagrou novamente pessoas escavando o solo altamente contaminado em busca de metais que possam ser vendidos para algum ferro-velho, desconhecendo os riscos que manipular esse tipo de material oferecem.
O problema da exposição de pessoas à contaminação naquela área é antigo. Denúncias de contaminação do solo e do lençol freático foram apresentadas na década de 1990. A fabricante de baterias encerrou suas atividades há alguns anos, mas deixou um problema ambiental gravíssimo. Após a retirada de maquinários e estoques, o local ficou abandonado com muito material perigoso exposto, como carcaças de baterias industriais e de submarinos, recipientes com ácido e outras matérias-primas altamente tóxicas. O grosso desse material foi retirado, mas o risco ainda é grande.
O perfil das pessoas que buscam encontrar algumas peças de chumbo ou outro metal é parecido. Em geral são desempregados que procuram alguma coisa para vender, sem ter noção dos riscos de contaminação a que estão expostos. Os “garimpeiros” não usam qualquer equipamento de proteção que minimizem os riscos de contaminação. A contaminação daquela área foi constatada pela Cetesb há vários anos. Após a divulgação de que o local era frequentado por pessoas em busca de componentes enterrados, em agosto do ano passado, a companhia ambiental impôs uma multa de R$ 257 mil à massa falida da empresa e foram enviados ofícios à Prefeitura de Sorocaba e à Secretaria de Meio Ambiente do município, notificando-os sobre a necessidade de providências para impedir o acesso de populares àquela área. O terreno foi cercado com arame farpado, o que não impediu que o local voltasse a ser frequentado por catadores de metais. Hoje o acesso é praticamente livre. A Câmara de Sorocaba criou, logo após a denúncia, uma Comissão Especial de Investigação (CEI) que ainda não concluiu os trabalhos. Não conseguiu sequer contratar uma empresa especializada para aferir os danos ambientais e impactos sociais que a Saturnia causou.
Descuidos da empresa que causou a poluição e do poder público foram responsáveis, guardadas as devidas proporções, ao acidente do césio-137 em Goiânia, em 1987, no caso que ficou conhecido como um dos piores acidentes radioativos do mundo. Na capital de Goiás, dois catadores de lixo entraram em uma clínica abandonada e encontraram uma máquina de radioterapia e a desmontaram em busca de metais com algum valor. Eles retiraram a parte superior da máquina e a levaram para casa, em um carrinho de mão. Abriram a caixa de chumbo que continha 19 gramas de césio-137, substância altamente radioativa. A capsula foi vendida a um ferro-velho e aí começou uma sequência de contaminação radioativa que atingiu centenas de pessoas e matou várias delas. Os imóveis por onde passou o material radioativo precisaram ser demolidos, resultando em 6 mil toneladas de material contaminado, enterrado longe da cidade. Foi montada uma verdadeira operação de guerra com hospitais de campanha para atender as pessoas contaminadas. O governo precisou pagar pensões vitalícias a 250 vítimas, mas posteriormente outras 2 mil pessoas (bombeiros, motoristas e policiais que trabalharam nas unidades de emergência) também passaram a ter esse direito. Os responsáveis pela clínica que abandonaram o equipamento foram condenados a apenas três anos e dois meses de prisão, pena que foi reduzida mais tarde à prestação de serviços comunitários.
A tragédia de Goiânia mostra como uma sequência de atitudes que misturam desleixo, irresponsabilidade de uma empresa, ignorância de quem manipulou material perigoso e falta de fiscalização por parte do poder público podem desencadear uma tragédia. É evidente que a Saturnia não utilizava material radioativo, mas componentes de baterias e matérias-primas utilizadas nesse segmento industrial são altamente tóxicos e podem prejudicar a saúde de quem os manipula sem proteção. A responsabilidade principal é de quem deixou o local poluído. Também podem ser responsabilizados os agentes públicos que deveriam fiscalizar, se de fato não o fizeram. A cidade como um todo espera providências, efetivas e urgentes. Mais uma vez, sob todos esses aspectos, cabe um posicionamento firme do Ministério Público.