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Editorial: A indignação que não nos comove mais

18 de Agosto de 2018 às 16:13

Não é sempre que um Jornal consegue publicar uma reportagem com profundidade -- e mesmo assim, acreditamos, deve ter tocado apenas a superfície -- como a de Cida Vida, nossa editora de tantos anos ("Novo presidente herdará 50 milhões de brasileiros sem carteira assinada", página A8, de ontem). Essa reportagem de uma página inteira, baseada nos dados recentes encontrados pelo IBGE, é mais que um retrato cruel do presente quadro social brasileiro. É um quadro imoral, quase pecaminoso no seu sentido mais filosófico, do que o homem pode fazer contra seu próprio povo. O Brasil tem uma força de trabalho, ainda segundo o IBGE, de 170 milhões de pessoas, ou como definem, em idade produtiva, maiores de 14 anos. Dessa população de potenciais pessoas produtivas, que equivale ao total de habitantes do Reino Unido, mais uma França e quase uma Espanha (sobrariam 7 milhões), mais de um terço estão fora da força de trabalho. Um pouco mais que uma Itália inteira está fora da contagem como força de trabalho.

Aos já conhecidos 13 milhões de desempregados (mais que um Portugal inteiro) mais os 37 milhões que tem uma atividade informal -- desde bicos a qualquer coisa -- somam-se outros 23 milhões de brasileiros que trabalham por conta própria, mas que não têm um CNPJ ou cadastro de autônomo. Trabalham, conseguem algum sustento? Talvez. Isso causa algum desalento?

Desalentados. Categoria à parte na classificação desse quadro lúgubre na história do Brasil. Desiludidos por terem lutado por anos e não ter conseguido emprego, ou registro como empregados, são pessoas que simplesmente desistiram da luta. E segundo o IBGE o número de desempregados seria ainda maior se esse triste grupo fosse contado como tal. São quase 5 milhões de pessoas que não procuraram emprego neste trimestre passado. Metade da população de Portugal. Um número maior que a população do Estado brasileiro do Espirito Santo não é contado como desempregado no trimestre. E se somarmos o número de brasileiros que procuraram emprego nos últimos dois anos e desistiram, esse grupo é igualmente impressionante: 3,162 milhões. A taxa de subutilização da força de trabalho é de 24,6%, o que representa 27,6 milhões de pessoas.

O mais irônico nessa tragédia tropical é que desalentados não são contados como desempregados. Ou seja, basta que um desempregado desista de procurar emprego, pendure o ânimo e não será mais um desempregado. Não entra para a contagem oficial.

E o que dizem os candidatos ao maior posto do País? O que faz o ainda presidente do Brasil? São questões que poderiam ter respostas e atos concretos apresentadas em planos de governo dos candidatos que mostrem como fazer, como vão lidar com desoneração de impostos, diminuição de burocracias. Como vão colocar o Brasil em termos de concorrência no mercado mundial. Soluções que mostrem como ser efetivamente leve nas cargas tributárias, na formação de mão de obra e no incentivo à empresa de trabalho intensivo. Como incentivar as pequenas empresas que criam tantos empregos formais? Qual seria o grande Plano Marshall brasileiro? Os candidatos, mesmo os mais ricos ou os mais vividos na administração pública, preferem apenas dizer o que vão fazer, com respostas decoradas. De fato, não enfrentam a realidade e apontam como vão fazer. A velha diferença entre know-what e know-how. Fácil o saber o quê. Difícil o saber como.

Há anos, em 1976, um antigo senador da República, Francelino Pereira, do partido oficial do governo de Ernesto Geisel, a Arena, indagou "Que país é este?" Na época, em pleno regime militar, discutia-se uma promessa do presidente Ernesto Geisel de iniciar a transição para o regime civil, em que o regime militar seria aberto gradualmente e os governadores seriam eleitos pelo voto direto dali a dois anos. Como a oposição duvidou da promessa, Francelino Pereira perguntou: "Que país é este em que o povo não acredita no calendário eleitoral estabelecido pelo próprio presidente?" No ano seguinte, Geisel fechou o Congresso, aumentou o mandato dos presidentes para seis anos, e decidiu que um terço dos senadores seriam indicado pelo presidente.

Hoje os jovens maduros cantam a mesma frase que não foi criada pelo cantor e compositor Renato Russo em sua conhecida música, "Que País é esse?" Mais recentemente, outro Renato, o Duque, da Petrobras, usou a mesma frase com seu advogado, quando estava sendo preso pela primeira vez, em novembro de 2014, uma das primeiras prisões da Lava Jato.

De senador a cantor, de jovens maduros a gatunos, o País aumenta sua face hedionda, pecaminosa pelo descuido com o próximo que parece não fazer parte de nossa vida, que não é nosso irmão. E ainda nos indagamos, indignamos: que País é esse?