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A simulação de uma tragédia

12 de Junho de 2020 às 00:01

Um estudante de Engenharia Civil da Universidade de Sorocaba cresceu ouvindo uma conhecida lenda urbana, passada oralmente de geração a geração sobre um possível rompimento da mais que centenária Represa de Itupararanga.

Inaugurada em 1914, além de fornecer energia elétrica hoje exclusivamente para Companhia Brasileira de Alumínio, do Grupo Votorantim, abastece com sua água vários municípios da região. Diz a lenda que caso o paredão do reservatório ruísse, a água liberada pelo desastre inundaria toda a região e chegaria à torre da Catedral Metropolitana de Sorocaba, que era no início do século passado era uma referência e certamente um dos pontos mais altos da cidade.

Ao chegar às etapas finais do curso, o então estudante Nilson Garcia Nunes resolveu usar esse mito regional como tema de seu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), um assunto que sequer é comentado pelos técnicos que hoje zelam pela barragem para evitar qualquer tipo de apreensão na população.

Como revela o recém-formado engenheiro, o estudo sobre eventual rompimento da represa foi bastante complexo. A barragem é classificada como muito segura e oferece risco muito baixo de rompimento, embora potencialmente tenha capacidade de produzir estragos catastróficos. Reportagem publicada pelo Cruzeiro do Sul sobre o trabalho obteve grande repercussão.

Como esclareceu o autor do trabalho, a classificação de “baixo risco” dada à represa é estabelecida por critérios de legislação federal, que categoriza os riscos das barragens levando em conta critérios técnicos, como altura do barramento, material da construção, deformações e recalques.

Para analisar os fundamentos da lenda o estudante se debruçou sobre livros durante dez meses, avançando em estudos de outras áreas de conhecimento como hidrologia, vazão da água e análises de geoprocessamento. Para ilustrar o trabalho produziu uma animação com auxílio de software disponibilizado pelo Corpo de Engenharia do Exército Americano e imagens aéreas captadas por satélites. A ideia era de simular as condições reais de um acidente.

O resultado foi surpreendente. O rompimento geraria uma mancha de água com mais de 300 milhões de metros cúbicos que devastaria as partes mais baixas da região. A água demoraria uma hora para atingir o centro de Votorantim e 20 minutos depois invadiria Sorocaba, com uma altura de 17 metros.

Acompanhando o curso do rio Sorocaba atingiria o Parque das Águas duas horas após o rompimento e três horas depois, o Parque São Bento. Sete horas e meia depois, o gigantesco volume de água teria cruzado Sorocaba e atingido o distrito de George Oeterer, em Iperó.

A catástrofe atingiria mais de 2.600 pessoas residentes em Votorantim e pelo menos outras 36 mil de Sorocaba. Seria uma das grandes tragédias da humanidade, mas não chegaria à torre da Catedral. Pelos cálculos, a água chegaria até o Largo do Canhão, a praça Arthur Fajardo, cerca de 450 metros da igreja.

Em um país que desafortunadamente tem assistido repetidos rompimentos de barragens, não de represas de água, cuja estrutura de construção é diferente e mais segura, mas de rejeitos de minérios, um trabalho como esse leva a várias conclusões.

Se as empresas mineradoras ou prefeituras das cidades de Mariana e Brumadinho, ambas em Minas Gerais, tivessem um trabalho de simulação como esse, mostrando por onde passaria a avalanche de rejeitos e com sistemas de alarmes eficientes, talvez muitas vidas pudessem ter sido salvas, e parte do desastre ecológico causado pelos rompimentos pudesse ser evitada.

Em Mariana, em novembro de 2015 ocorreu o maior desastre ambiental na área de mineração do mundo. A barragem de lama tóxica dizimou o distrito de Bento Rodrigues e matou 19 pessoas. A lama tóxica devastou a bacia hidrográfica do rio Doce, onde acabou com a vida aquática, com a fonte de subsistência de milhares de pessoas e matou o turismo regional.

A mancha de rejeitos cruzou dois Estados e levou sua toxidade ao litoral do Espírito Santo. O rompimento da represa de rejeitos de Brumadinho, de empresa pertencente ao mesmo grupo responsável por Mariana, só ocorreu pela impunidade do primeiro desastre. Neste último rompimento, houve uma tragédia humana, com a morte de aproximadamente 250 pessoas.

Somente o Estado de Minas Gerais têm mais de 500 barragens de rejeitos. A região de Sorocaba tem várias barragens, inclusive de rejeitos de mineração. Trabalhos como esse realizado pelo estudante jogam luz sobre um assunto que só é lembrado quando ocorrem tragédias. Esclarecer e discutir efeitos de um eventual rompimento de obras potencialmente perigosas deveria estar entre as prioridades do poder público e de empresas envolvidas.