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Editorial

O Brasil e a epidemia dos gastos invisíveis

21 de Novembro de 2025 às 22:45
Cruzeiro do Sul [email protected]
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A política brasileira encontrou um expediente silencioso — e extremamente conveniente — para driblar o escrutínio público: a expansão dos gastos governamentais classificados como “reservados”, “sigilosos” ou “estratégicos”. O fenômeno, que avança tanto no governo federal quanto em Estados e municípios, tornou-se a nova fronteira da opacidade. Um País que já convive com déficits crônicos agora enfrenta outro inimigo, menos visível, porém mais corrosivo: o orçamento invisível.

O que se observa é a multiplicação de despesas que escapam de detalhamento, seja pela classificação de segurança institucional, seja por brechas legais que permitem registrar gastos sem informação mínima de finalidade, beneficiário ou impacto. Assim, enquanto o cidadão é obrigado a enfrentar cada vez mais burocracia para buscar direitos básicos, o poder público se permite cada vez mais zonas de sombra.

A deterioração da transparência é um problema estrutural. O Portal da Transparência — ferramenta concebida para iluminar as contas públicas — tem se tornado, aos poucos, um labirinto. Informações antes claras agora aparecem fragmentadas, desatualizadas ou simplesmente omitidas sob pretextos administrativos. E o mais grave: os órgãos de controle, como a Controladoria-Geral da União, tribunais de contas e até o próprio Ministério Público, frequentemente descobrem gastos apenas após denúncias externas, quando o dinheiro já se foi.

O avanço das rubricas genéricas é outro sintoma preocupante. Despesas milionárias têm sido registradas sob etiquetas nebulosas como “ações de caráter estratégico”, “apoio institucional” ou “serviços especiais”. Essa semântica administrativa, tão vaga quanto conveniente, permite uma espécie de caixa-preta oficializada. Não se trata de mera contabilidade criativa, mas de um expediente que compromete o coração do sistema democrático, justamente aquele que obriga a prestação de contas por suas ações, decisões e resultados.

Não são apenas governos que se aproveitam dessa opacidade. Há uma cadeia paralela de fornecedores, consultorias e operadores que prospera na penumbra orçamentária. Quando não há especificação clara, a contratação se torna terreno fértil para favorecimentos, sobrepreços e interferência política. A narrativa da “necessidade estratégica” tem servido de salvo-conduto para práticas que jamais passariam por um processo transparente.

A falta de resposta institucional amplia o problema. O Congresso Nacional, por exemplo, poderia exigir relatórios detalhados de gastos excepcionais. Mas a maioria das lideranças parece confortável com o escurinho orçamentário, afinal, ele protege governos, mas também parlamentares, Estados e prefeituras que adotam a mesma prática em suas administrações. Há, portanto, um pacto tácito de silêncio que beneficia a todos, menos o contribuinte.

A degradação da transparência também tem um custo social imediato. Quando verbas são retiradas de áreas fundamentais para financiar despesas obscuras, a população perde duas vezes: deixa de receber serviços públicos adequados e ainda vê o orçamento ser manipulado sem debate. Em vez de planejar políticas públicas de longo prazo, governos se refugiam em rubricas que evitam fiscalização e dispersam recursos, sem explicar por que prioridades essenciais permanecem abandonadas.

Além disso, a opacidade gera um ambiente de desconfiança permanente, corroendo a legitimidade das decisões governamentais. Em tempos de polarização e descrença na política, permitir que parcelas crescentes do gasto público escapem de luz e controle é alimentar o cinismo. Democracias sólidas se constroem com transparência radical, não com sigilos cômodos. Se o Brasil insiste em ampliar as sombras, acabará descobrindo tarde demais que um Estado que não presta contas é um Estado que também não governa com autoridade moral.

Se o Executivo deseja recuperar credibilidade, deve reverter a escalada da obscuridade e restabelecer um padrão mínimo de transparência. E se o Legislativo pretende se comportar como poder fiscalizador — e não como sócio — precisa romper com a complacência e exigir controle real sobre as contas.

A democracia depende de luz. Orçamentos opacos produzem governos opacos. E governos opacos, cedo ou tarde, geram crises que não cabem em nenhuma rubrica.