Editorial
Em defesa da norma culta
Agora é lei: a redação de documentos oficiais dirigidos ao cidadão não pode usar novas formas de flexão de gênero e de número das palavras da língua portuguesa, portanto devem ser seguidas a norma padrão e as regras gramaticais consolidadas pelo Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa e pelo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. A nova determinação está na Política Nacional de Linguagem Simples, recém-criada pela Lei 15.263/2025, sancionada pelo presidente Lula e publicada no Diário Oficial da União em sua edição da última segunda-feira.
A lei que proíbe o uso da linguagem neutra em órgãos públicos brasileiros reacende um debate que, mais do que linguístico, se tornou um símbolo de disputa cultural. E, nesse cenário, é preciso admitir: a defesa irrestrita da linguagem neutra, tal como vem sendo feita por seus entusiastas mais ruidosos, carece de rigor, maturidade e compromisso com a integridade do idioma. A língua portuguesa não é um laboratório improvisado para experimentações ideológicas, tampouco um campo para voluntarismos que desprezam séculos de construção normativa.
Os defensores da linguagem neutra apresentam-na como instrumento de inclusão. No entanto, ignoram um dado elementar: inclusão não se faz à revelia das regras que garantem a comunicação clara e compartilhada. O idioma é um sistema coletivo, não uma colcha de retalhos moldada conforme preferências identitárias. Quando se tenta impor, por pressões políticas ou ativismo sem lastro linguístico, soluções artificiais como “elu”, “amigue” ou desinências neutras inexistentes na gramática, corre-se o risco de comprometer justamente aquilo que dá ao português sua força: a previsibilidade e a inteligibilidade.
Nesse ponto, a lei sancionada toca em uma questão essencial: o Estado não pode adaptar sua linguagem ao sabor de modismos ou agendas setoriais. Órgãos públicos precisam de estabilidade normativa. A redação administrativa deve ser precisa, unívoca e técnica. Não pode oscilar entre experimentações que geram ruídos, confusão e divergências interpretativas. A preservação da norma culta não é conservadorismo; é responsabilidade institucional.
É igualmente necessário afastar a leitura simplista segundo a qual a proibição representaria uma vitória deste ou daquele governo. O mérito da discussão está muito além da política partidária — e, nesse aspecto, o governo federal tampouco é protagonista virtuoso. Em vez de acolher o debate com seriedade, a administração federal preferiu tratá-lo como pauta sensível, evitando posicionamentos claros e permitindo que o tema fosse capturado por extremismos discursivos. A ausência de orientação técnica sólida abriu espaço para a polarização, e dela se aproveitou quem desejava, de um lado, impor a linguagem neutra como se fosse inevitável e, de outro, legislar de forma definitiva.
Ainda assim, é inegável que a defesa da norma culta preserva um patrimônio civilizatório. O português, como qualquer língua, evolui organicamente e não por decreto de grupos que confundem militância com método. A língua se transforma quando a sociedade inteira a transforma, de modo espontâneo, consistente e duradouro. Não quando alguns resolvem que basta mudar o plural ou implantar uma vogal neutra para “corrigir” injustiças sociais que, na verdade, exigem políticas públicas, não reformas gramaticais improvisadas.
O debate sobre linguagem neutra expõe, portanto, uma encruzilhada: de um lado, uma militância que subestima a complexidade linguística e superestima o poder simbólico de intervenções artificiais; de outro, a necessidade legítima de proteger a língua padrão como ferramenta de comunicação institucional. E é este segundo aspecto que deve prevalecer quando se trata de documentos oficiais, atos normativos e comunicação administrativa.
A pluralidade de expressões deve ser respeitada na esfera privada e cultural. Já o Estado, por sua natureza, precisa falar a língua de todos — e essa língua, até prova científica em contrário, é a norma culta vigente. Proteger o português de experimentos apressados não é retrocesso: é compromisso com a clareza, a técnica e a própria democracia.