Editorial
Um grande passo contra o crime organizado
O Brasil deu na noite de terça-feira um passo decisivo — e, ao mesmo tempo, revelador — na disputa política e institucional sobre como enfrentar o crime organizado. A aprovação do projeto de lei antifacção pela Câmara dos Deputados não é apenas uma etapa legislativa; é um capítulo que expõe divergências profundas entre o que o governo federal pretendia e o que o Parlamento, sob a relatoria do deputado Guilherme Derrite (PL-SP) — secretário de Segurança Pública licenciado do Estado de São Paulo, decidiu entregar ao País.
Para compreender o alcance da mudança, é necessário partir de um ponto básico: governo e Congresso concordam que as facções criminosas ultrapassaram a fronteira do mero associativismo ilícito e hoje operam como conglomerados multinacionais de violência, tráfico e lavagem de dinheiro. O dissenso nasce justamente na resposta jurídica que cada lado considera adequada.
O projeto original, elaborado pelo governo Lula, tinha como eixo a modernização tecnológica e a padronização nacional de instrumentos de investigação. A proposta buscava privilegiar mecanismos de rastreamento financeiro, integração de bancos de dados, tipificação de condutas ligadas ao financiamento de facções e estímulo à cooperação entre Estados. Em síntese, era um projeto orientado à inteligência e à prevenção estruturada, com dispositivos mais cautelosos quanto ao aumento de penas, preocupado em evitar expansões legislativas que pudessem gerar controvérsias constitucionais.
Já o texto substitutivo aprovado pelos deputados, sob relatoria de Derrite, vai em outra direção — mais dura, mais direta e mais simbólica já votado pelo Parlamento para enfrentar o crime organizado. O relator incorporou ao texto central uma caracterização explícita de facções como organizações que, pela sistematicidade da violência, representam ameaça à ordem pública. Na prática, isso abre margem para enquadramentos mais severos, amplia instrumentos para operações policiais e endurece o regime de punições. O texto também reforça a possibilidade de isolar lideranças em regimes de alta segurança, prevista de modo mais tímido na versão do Executivo.
A diferença entre as duas abordagens não está apenas na ênfase, mas no modelo de Estado que cada uma pressupõe. O governo apostou na sofisticação institucional; o Parlamento, na contundência repressiva. O Executivo preferia construir uma política de longo prazo, alicerçada em tecnologia e coordenação federativa; o Legislativo optou por enviar um sinal inequívoco de força num momento em que facções pressionam o território nacional com disputas armadas, ataques coordenados e crescente influência sobre economias locais.
O texto do relator Derrite aprovado consolida sete eixos centrais considerados históricos pelas instituições de segurança pública: Criação do crime de “domínio social estruturado” considerado hediondo, para evitar controle de comunidades, por exemplo, com penas de 20 a 40 anos, sem fiança, indulto ou anistia; punição para quem financia, apoia ou dá cobertura às facções (12 a 20 anos); endurecimento real dentro do sistema prisional; asfixia financeira total das facções; mais velocidade e instrumentos para investigação; criação do Banco Nacional de Organizações Criminosas; e aumento de penas para crimes cometidos por facção.
Há, evidentemente, riscos e acertos em ambos os lados. O projeto original pecava por subestimar o apelo público — e político — de medidas mais duras para um País que testemunha a expansão de grupos criminosos sobre portos, fronteiras e até administrações municipais. Já o texto aprovado levanta o debate sobre possíveis tensionamentos constitucionais, sobretudo quando aproxima certas práticas de facções de categorias penais tradicionalmente usadas para crimes de excepcional gravidade. O risco é que se abra espaço para interpretações amplificadas que, em mãos erradas, possam atingir alvos fora do escopo pretendido.
Ainda assim, é inegável que o Congresso exerceu protagonismo. Derrite construiu um texto que dialoga com a pressão de secretarias de segurança estaduais e de bancadas parlamentares que cobram respostas imediatas aos episódios recentes de violência organizada, pois entrega uma resposta rápida e dura ao poder das facções, atende aos pedidos das forças estaduais de segurança, que lidam diretamente no combate ao crime organizado e milícias e reflete o sentimento social de que o País precisa agir com firmeza. Politicamente, expôs mais uma fragilidade do governo Lula.
Talvez esteja aí uma possível resposta à forma de como o governo Lula, os lulistas e a base governista na Câmara dos Deputados recebeu a aprovação do texto de Derrite por 370 votos favoráveis (26 vindos da base lulista); 110 contrários e três abstenções: com muitas críticas e desaforos, inclusive por parte do próprio Lula e de seus ministros, como Fernando Haddad, que mais uma vez se esqueceu de cuidar da economia para tentar opinar na segurança.
Já a direita comemorou, assim como 26 deputados da base governista, pois entende que o melhor texto prevaleceu, já que foi costurado sim como diálogo no Parlamento e tentativas frustradas de falar como o governo federal. Mesmo assim, Derrite refez o texto seis vezes, contemplando vontades governistas, até chegar ao que foi aprovado.
Resta agora ao Senado analisar o texto e ao País decidir qual abordagem deseja institucionalizar: a estratégia de inteligência desenhada pelo Executivo ou o enfrentamento vigoroso delineado pela Câmara. O Brasil precisa de tecnologia, cooperação federativa e punição exemplar — mas, sobretudo, de coerência e continuidade. O combate às facções não admite improviso e nem qualquer tipo de benevolência e sinalizações com aquelas de subir os morros ocupados pela facção e ser bem recebido como uns e outros que navegam na esquerda costumam fazer vez em quando.