Editorial
O caso de Santa Catarina
Há alguns dias, uma questão originada em Santa Catarina ganhou projeção nacional justamente porque houve intervenção do Supremo Tribunal Federal, mais uma vez. A decisão do ministro Flávio Dino, do STF, de reconduzir ao concurso público para delegada de Polícia Civil de Santa Catarina uma candidata previamente desclassificada pela banca examinadora, reacendeu um debate delicado: até onde vai o direito individual quando confrontado com a natureza sensível de uma carreira de Estado? E, sobretudo, se a intervenção judicial — em instância máxima — foi a melhor escolha institucional para um caso que o Tribunal de Justiça catarinense já havia analisado e confirmado.
O ponto de partida é simples: nenhuma pessoa pode ser responsabilizada por atos cometidos por terceiros. A condição de ser esposa de um ex-traficante condenado não é, por si só, causa automática de inelegibilidade moral. O ordenamento jurídico brasileiro não admite culpa por associação ou laços afetivos. Mas concursos para carreiras policiais não lidam apenas com conhecimentos técnicos; envolvem, por essência, requisitos de idoneidade, reputação e confiança pública. A pergunta que se impõe, portanto, é se a relação conjugal da candidata, somada ao histórico criminal do marido, compromete a credibilidade exigida para o exercício de autoridade policial.
A comissão do concurso, instância natural para avaliar critérios de vida pregressa, entendeu que sim. O Tribunal de Justiça catarinense, ao confirmar a eliminação, também entendeu que havia elementos suficientes para manter a desclassificação. O STF, porém, reviu a decisão. Ao fazê-lo, Dino abriu um precedente incômodo: o de que a análise da vida pregressa — usualmente técnica e voltada ao interesse público — pode ser relativizada em nome de uma leitura ampliada de direitos individuais, ainda que isso implique desautorizar instituições locais e seus mecanismos de controle.
É nesse ponto que a decisão fragiliza mais do que resolve. Não se trata de negar à candidata o direito de concorrer, tampouco de admitir discriminação por laços familiares. Trata-se de reconhecer que a função de delegado de polícia exige uma blindagem reputacional que vai além da esfera privada. O Estado deposita nessas figuras poder investigativo, acesso a informações sensíveis e capacidade de agir em ambientes de criminalidade organizada. A percepção pública — elemento essencial para a legitimidade policial — é inseparável da carreira. Quando a própria banca, com acesso aos dados do caso, identifica risco à confiança institucional, ignorar tal avaliação não é gesto de garantia constitucional: é gesto de intervenção arriscada.
O Supremo tem a missão de corrigir abusos, não de reescrever critérios de concursos públicos sempre que houver controvérsia. Ao intervir, Dino enviou uma mensagem dúbia: que o filtro moral e funcional aplicado a carreiras de Estado pode ser reinterpretado a depender da opinião de um ministro. A consequência pode ser a judicialização permanente de fases de investigação social, uma porta aberta para insegurança jurídica.
A candidata tem direito fundamental à dignidade e ao devido processo legal. Mas a sociedade, igualmente, tem direito a que seus delegados de polícia passem por critérios rigorosos de vida pregressa, definidos por quem conhece a realidade da segurança pública local. Quando o equilíbrio entre essas duas esferas é rompido por uma decisão que despreza a autonomia técnica da banca e o julgamento do tribunal estadual, perde a meritocracia, perde a lógica do concurso e perde, sobretudo, a confiança no sistema.
O caso de Santa Catarina não é um debate sobre moralismo, mas sobre prudência institucional. E, sob essa ótica, a intervenção de Dino parece ter ido longe demais e mostra mais um desequilíbrio institucional que o País insiste em ignorar. O STF, mais uma vez, ultrapassa o limite entre garantir direitos e reescrever políticas públicas, ocupando um espaço que não lhe pertence.
Do ponto de vista técnico, a eliminação da candidata se deu na fase de investigação social, etapa legítima, prevista em edital, e imprescindível para carreiras de Estado que lidam com criminalidade organizada, infiltrações e riscos à integridade dos próprios policiais. Em qualquer país com protocolos mínimos de segurança, laços familiares com condenados por crimes graves acendem alertas automáticos. O Brasil não deveria ser exceção.
O caso de Santa Catarina expõe, mais uma vez, a necessidade urgente de redefinir os limites da intervenção judicial em concursos públicos. Se tudo pode ser revisto pelo Supremo, a autonomia administrativa deixa de existir. E quando o STF decide mais do que deveria, o País inteiro perde previsibilidade, segurança e respeito às instituições técnicas. Nesse episódio, a decisão de Dino não fortalece a justiça, enfraquece o Estado.