Editorial
Punição certa à escolha irresponsável
O juiz aposentado Fernando Augusto Fontes Rodrigues Júnior, de 61 anos, e a garota Carolina Silva de Almeida que estava com ele na caminhonete no dia 24 de julho, em Araçatuba, quando ele atropelou a ciclista Thais Bonatti, foram denunciados pelo Ministério Público de São Paulo por homicídio doloso, ou seja, quando se assume o risco de matar. A denúncia foi oferecida pelo promotor Adelmo Pinho.
Thais seguia para o trabalho, de bicicleta, como era o seu costume, e o juiz, na condução da caminhonete e a garota, haviam acabado de deixar uma boate, onde ele ingeriu bebida alcoólica por cerca de 10 horas seguidas, associado aos fármacos Revoc e Carbolitium, potencializadores dos efeitos do álcool, conforme apurou a investigação. Thais permaneceu por dois dias internada na UTI, até a sua morte.
Segundo a denúncia do MP, “o magistrado aposentado dirigia embriagado e assumiu o risco de matar ao conduzir o veículo de forma imprudente, enquanto a sua acompanhante é acusada de concorrer para o cometimento do crime.” Até então, os dois acusados haviam sido indiciados por homicídio culposo, que é quando não há intenção de matar.
Ainda segundo o MP, pouco antes do atropelamento, o juiz parou o veículo e a acompanhante, que estava semidespida, sentou-se no colo do motorista. Em seguida, o veículo foi colocado em movimento e, metros à frente, atingiu a ciclista. “O denunciado, em específico, como juiz de direito aposentado, é conhecedor das leis (além, cediço, do que é certo e errado) e tinha plena consciência de que não poderia dirigir inebriado, quiçá tentar fazer sexo com a denunciada no período matutino (às claras), no interior de um veículo em movimento e numa via pública de grande fluxo, gerando perigo comum”, cita trecho da denúncia.
Além de mudar a tipificação do crime, o MP também pede que os acusados sejam condenados ao pagamento de indenização aos familiares de Thais, a qual descreve como pessoa jovem de apenas 30 anos, e trabalhadora. O promotor pede que o juiz aposentado pague reparação dos danos materiais e morais estipulada em pelo menos R$ 500 mil e a garota, pelo menos R$ 50 mil.
“Ambos os denunciados devem ser responsabilizados pelo grave crime com as qualificadoras do emprego de meio que resultou perigo comum e do recurso que dificultou a defesa da vítima, pois assumiram o risco do resultado causado, aceitando-o, portanto, ao agir como agiram, em especial, com menosprezo à vida alheia, bem como ao pudor e à decência que se espera numa sociedade civilizada”, finaliza o texto. Com a denúncia, o MP entende que o caso deve ser julgado pelo Tribunal do Júri.
A decisão do MP de reavaliar o caso e, agora, tratar como crime doloso aquilo que primeiro havia sido classificado como culposo, não é apenas um ajuste técnico. É uma mudança que expõe um debate profundo sobre responsabilidade, igualdade perante a lei e o limite entre imprudência e indiferença à vida alheia.
Casos como esse, em que um agente público, ainda que aposentado, se envolve em conduta gravíssima no trânsito e causa morte, não podem ser tratados com a leveza semântica do “acidente”. E é exatamente por isso que a reclassificação tem significado institucional.
A distinção é simples na letra da lei, mas complexa na prática. Crime culposo ocorre quando o agente não quer o resultado, tampouco o aceita, mas o provoca por negligência, imprudência ou imperícia. Crime doloso, por outro lado, existe quando o agente quer o resultado ou assume o risco de produzi-lo, o chamado dolo eventual.
A reclassificação feita pelo MP carrega uma mensagem: certas condutas ultrapassam a imprudência. Quando alguém dirige embriagado, em velocidade incompatível, descontroladamente, ou em circunstâncias que evidenciam desprezo pelos riscos, não se trata mais de um lapso. É escolha consciente.
Então, não pode tratar como acidente aquilo que nasce de escolhas pessoais altamente arriscadas. A revisão feita pelo MP recoloca o debate no lugar certo: não se trata de punir mais, mas de nomear corretamente a gravidade de uma conduta que custou uma vida.
A sociedade brasileira sabe que o trânsito não mata apenas por fatalidades e sim por escolhas irresponsáveis e elas devem ter consequências proporcionais. A mudança de culposo para doloso é, portanto, mais que um ato jurídico. É um ato moral e institucional. É a reafirmação de que a vida vale mais do que interpretações benevolentes.
Há muito tempo o trânsito brasileiro deixou de ser cenário de fatalidades para se tornar campo de escolhas perigosas. Beber e assumir o volante é uma decisão consciente de expor terceiros a um risco mortal. Isso não é culpa. É desprezo.