Editorial
A politização do Judiciário e equilíbrio democrático
Poucas instituições no Brasil carregam tanto peso simbólico quanto o Poder Judiciário. É nele que o cidadão deposita a esperança de ver a lei aplicada com isenção, a Constituição respeitada e a justiça prevalecer sobre os interesses. No entanto, o que se observa, com crescente inquietação, é o avanço da politização de decisões, algo que pode até mesmo ameaçar a credibilidade de um dos pilares do Estado Democrático de Direito.
A fronteira entre a Justiça e a política sempre existiu — e sempre exigiu cautela. Juízes interpretam leis criadas por políticos e, inevitavelmente, decidem sobre temas que repercutem na arena pública. Mas o que preocupa é quando a toga passa a se confundir com a tribuna, quando o juiz deixa de ser árbitro e passa a atuar como protagonista do jogo político. Essa situação enfraquece a percepção de imparcialidade e compromete o equilíbrio entre os poderes.
O Brasil tem assistido a episódios que evidenciam essa distorção. Decisões judiciais com impacto direto sobre eleições, políticas públicas e até sobre o funcionamento do próprio Legislativo ganharam contornos de disputa ideológica. A opinião jurídica, quando se transforma em opinião política, fere a liturgia do cargo e mina a confiança da sociedade.
É preciso reconhecer que parte dessa exposição decorre do vácuo moral deixado por outras instituições. Quando o Legislativo se omite e o Executivo se mostra errático, o Judiciário tende a preencher o espaço. Mas esse protagonismo, que pode parecer virtuoso num primeiro momento, traz um custo elevado: a erosão da separação dos poderes e a transformação da Justiça em ator político. Um juiz militante, de qualquer lado, é tão perigoso quanto um político que se acha um juiz.
O remédio para esse desequilíbrio não virá apenas de dentro do sistema. Exige que o Parlamento cumpra seu papel de legislar, que o Executivo governe com responsabilidade e que a sociedade cobre limites e transparência. O Judiciário, por sua vez, precisa resgatar a discrição e a sobriedade que sempre caracterizaram o exercício da magistratura. Justiça não tem lado — e, quando parece ter, perde a razão de ser.
E foi exatamente esse o foco do debate da última reunião do Conselho Superior de Direito da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (FecomercioSP), realizado no fim de outubro: “A crescente politização do Poder Judiciário brasileiro e o ativismo dos tribunais superiores”, que têm provocado preocupações entre juristas, empresários e estudiosos do Direito. O Conselho da FecomercioSP vem acompanhando com atenção o fenômeno da interferência entre as funções de Estado, com impacto direto sobre a previsibilidade normativa, a segurança jurídica e o equilíbrio entre os poderes.
Na avaliação de Ives Gandra Martins, presidente do Conselho, “a tendência à hipertrofia que vem sendo exercida por representantes do Judiciário, especialmente do Supremo Tribunal Federal (STF), ultrapassa, em diversos momentos, a função constitucional de guardião da Carta Magna. Em decisões recentes, a Corte passou a atuar como instância revisora de políticas públicas e condutas políticas, transformando-se em agente central do debate público e, por vezes, em substituto da vontade do legislador.”
Jurista respeitado, Ives Gandra Martins avalia que “o cenário exacerba o que os juristas denominam ‘supremacia judicial’, um desequilíbrio que inverte a lógica da separação dos poderes e compromete a autonomia das instituições democráticas. Quando o Judiciário se converte em protagonista político, ele se distancia de sua função essencial: a de assegurar o império da lei com imparcialidade e previsibilidade”.
Daquela reunião do Conselho Superior de Direito da FecomercioSP saiu uma conclusão: “a defesa da recuperação do princípio da autocontenção judicial, expressão da prudência e da deferência do Judiciário às instâncias democraticamente eleitas. A consolidação da democracia exige um Judiciário técnico, moderado e independente, que atue com firmeza na defesa da Constituição, sem substituir a soberania popular nem a função representativa do Parlamento”, observou Ives Gandra Martins.