Editorial
Cuidados paliativos
Em uma sociedade que evita falar sobre a morte, o tema dos cuidados paliativos ainda é tratado como um tabu — quando, na verdade, deveria ser um pilar das políticas públicas de saúde. Cuidar de quem não tem mais possibilidade de cura não é desistir da vida, mas reafirmar a dignidade humana diante de sua condição mais frágil.
Os cuidados paliativos representam uma mudança de paradigma a partir de um conjunto de práticas médicas, psicológicas e sociais voltadas a melhorar a qualidade de vida de determinados pacientes. O foco não é mais a cura, mas sim o alívio da dor, do sofrimento físico, emocional e espiritual, incluindo seus familiares. Eles deslocam o foco da essência da medicina para um olhar integral sobre o paciente, que inclui o corpo, a mente e as relações afetivas, respeitando valores, crenças e a autonomia de cada indivíduo.
O Brasil, entretanto, ainda está longe de oferecer esse direito de forma ampla. Segundo dados da Academia Nacional de Cuidados Paliativos, menos de 15% dos hospitais brasileiros contam com equipes especializadas na área. Na rede pública, o número é ainda menor, refletindo a falta de planejamento e a ausência de formação específica. O resultado é triste: pacientes em sofrimento desnecessário e famílias desamparadas emocionalmente.
Há quem confunda o cuidado paliativo com a eutanásia, um equívoco que revela desinformação e resistência cultural. Os paliativos não antecipam a morte; eles apenas recusam o prolongamento artificial da dor. Cuidar até o fim é um gesto de humanidade e de respeito. E, mais do que isso, é reconhecer que a saúde pública deve amparar o cidadão em todas as fases da vida, inclusive na terminal.
Defender políticas públicas de cuidados paliativos é, portanto, defender o direito à dignidade. É garantir que o sistema de saúde não trate o fim da vida como um fracasso médico, mas como parte inevitável da existência, um momento que exige sensibilidade, empatia e presença.
O avanço dos cuidados paliativos no Brasil não depende apenas de investimentos, mas de uma mudança cultural. É preciso romper o silêncio, educar profissionais e sociedade e compreender que cuidar também é saber acolher o inevitável. A medicina pode não curar sempre, mas pode e deve aliviar, confortar e acompanhar até o último instante.
Nesse sentido, o Senado aprovou na quarta-feira um projeto de lei que cria o Programa Nacional de Cuidados Paliativos. Pela proposta, o programa será financiado pela União, pelos Estados, pelo Distrito Federal e pelos municípios.
O projeto prevê que os pacientes passarão a ter direitos a cuidados paliativos adequados à complexidade da situação, a cargo de uma equipe multidisciplinar; de ser informados sobre seu estado clínico; de participar das decisões sobre os cuidados paliativos; e à privacidade e confidencialidade sobre dados pessoais.
Em relação aos familiares, a proposta estabelece que eles devem receber apoio adequado; obter informações sobre o estado clínico do paciente, caso seja da vontade dele; e participar das decisões sobre os cuidados paliativos, respeitando primariamente a vontade do paciente.
Segundo o texto, o programa deve dar formação a profissionais sobre o assunto, fornecer medicamentos considerados fundamentais e organizar condutas para a presença permanente de cuidador no hospital ou garantir o direito de visita por videochamada, caso haja contraindicação médica da presença física da família.
Antes de virar lei, a discussão volta à Câmara dos Deputados. Mas já é um avanço. A exemplo de outros países que há tempos já editaram regulamentações consolidadas na área, o Brasil dá um grande passo para garantir a dignidade e a qualidade de vida de seus cidadãos. Em todo o mundo, os cuidados paliativos têm sido reconhecidos como uma parte essencial dos sistemas de saúde de qualidade.
O desafio é cultural e institucional. É preciso que a sociedade compreenda que cuidados paliativos não significam “desistir de tratar”, mas tratar de forma humana e responsável. Mais do que políticas, são atos de humanidade que transformam o sofrimento em dignidade.