Editorial
Sandro e o impasse
Sorocaba está vivendo um episódio que vem se tornando emblemático e provocando discussões acaloradas pela repercussão nacional que o assunto tomou.
Desta vez, a polêmica não gira em torno, por exemplo, da possível ou não implantação da marginal direita do rio Sorocaba no mesmo espaço em que já existe um projeto para a criação de um parque linear, e também não envolve qualquer outro assunto que diga respeito a possíveis intenções que levem aos sorocabanos uma melhor e maior qualidade de vida no seu dia a dia.
O fato que vem causando mobilização na cidade, desta vez, é uma decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), ocorrida na semana passada, que concedeu efeito suspensivo à sentença que determinava a transferência do elefante Sandro para o Santuário de Elefantes Brasil (SEB), localizado no Mato Grosso.
A decisão do TJ adia, mas não encerra, uma das mais emblemáticas discussões judiciais envolvendo o bem-estar animal não apenas em Sorocaba, mas no País. Sandro, um elefante asiático de 53 anos, vive desde 1982 no Parque Zoológico Municipal Quinzinho de Barros, e se tornou, com o passar do tempo, um símbolo da cidade. Mas hoje, mais do que nunca, representa algo maior: a difícil transição entre uma visão antiga de zoológicos e uma nova consciência coletiva sobre os direitos dos animais.
Desde a morte de sua companheira, a elefanta Haisa, em 2020, Sandro vive sozinho em seu recinto. A solidão de um animal de comportamento social complexo acendeu um alerta que ultrapassou os muros do zoológico e repercutiu na sociedade civil, em grupos de proteção animal, no Ministério Público e na opinião pública nacional, visto que no mundo atual, ditado pelas redes sociais, qualquer assunto que provoque alguma polêmica ganha ampla repercussão.
A recomendação para que Sandro fosse transferido a um espaço mais adequado — onde pudesse, enfim, conviver com outros de sua espécie e receber cuidados especializados — surgiu como resposta a essa inquietação.
O debate, entretanto, que poderia ter sido conduzido com maturidade institucional e foco exclusivo no bem-estar do animal, tomou outro rumo. O embate ganhou contornos jurídicos, políticos e midiáticos.
O Ministério Público ajuizou ação, a prefeitura resistiu, o caso subiu às instâncias superiores e se transformou em um cabo de guerra de narrativas. De um lado, técnicos e defensores da causa animal apontam os benefícios da transferência. De outro lado, o poder público municipal questiona a decisão judicial e sustenta que Sandro está muito bem assistido em Sorocaba e “satisfeito” com seu atual recinto, visto que não apresenta qualquer comportamento que aponte para o contrário. O animal se mostra saudável, se alimenta normalmente, não é agressivo, não apresenta qualquer sinal de alguma doença e interage com seus tratadores.
O problema, neste momento, não é apenas o destino de Sandro, mas o modelo de gestão pública e a responsabilidade ética que temos para com os seres vivos sob nossa tutela. A concessão do efeito suspensivo pela Justiça garante à prefeitura uma sobrevida na disputa judicial, mas impõe ao debate uma urgência maior: até quando as decisões sobre animais silvestres em cativeiro serão tratadas com a mesma lógica burocrática de uma questão administrativa?
Não se trata de romantizar santuários nem de demonizar zoológicos. Ambos podem cumprir papéis importantes, desde que respeitem parâmetros técnicos e científicos modernos. Lamentavelmente, o debate em torno de Sandro tem sido contaminado por posturas e ações não adequadas, e não podemos nos deixar contaminar por elas, visto que a decisão envolve um ser vivo, que não consegue sobreviver por si só longe da natureza e precisa de cuidados.
A decisão sobre o destino de Sandro não deve ser determinada pelo volume de likes nas redes, mas por dados técnicos, avaliações médicas, pareceres de especialistas e, sobretudo, pela aplicação ponderada da lei.
O Ministério Público tem atuado de forma coerente com sua missão constitucional de zelar pelo interesse público e pelos direitos difusos — entre eles, os direitos dos animais.
O fato de o TJ-SP ainda analisar o mérito da ação nos próximos meses revela que há espaço para reflexão, revisão e eventual consenso. Espera-se que essa janela seja aproveitada para se elevar o nível do debate.
Que se permita aos técnicos do SEB o acesso ao recinto, que se ouçam as partes com equilíbrio e que se respeite a liturgia do processo judicial, sem ameaças ou manipulações emocionais.
Sandro não é um símbolo político. Não deve ser usado como ferramenta de marketing, de autopromoção ou de enfrentamento institucional. Ele é um ser que possui instinto e percepção, com necessidades próprias, e que vive sob total dependência de decisões humanas. Essa dependência exige de nós responsabilidade e, sobretudo, compaixão.
Independentemente do desfecho judicial, que certamente será respeitado, o caso Sandro deve nos fazer refletir sobre o papel dos zoológicos no século 21, sobre como tratamos os animais que mantemos sob nossa guarda e sobre a urgência de repensar políticas públicas que coloquem a vida — e não o orgulho — no centro das decisões.
Que o tempo concedido por esse efeito suspensivo seja utilizado não para prolongar disputas, mas para construir soluções. Afinal, Sandro já esperou demais. E quem espera por ele agora é a consciência coletiva de uma cidade e de um País que pretende ser comprometido com a justiça e com a vida.