Editorial
Audiência de custódia e os presos reincidentes

As audiências de custódia foram instituídas no Brasil em 2015, por meio de uma iniciativa do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), durante a gestão do então presidente Ricardo Lewandowski, ex-ministro do Supremo Tribunal Federal e atual ministro da Justiça e Segurança Pública do governo Lula.
Em parceria com o Ministério da Justiça e os Tribunais de Justiça estaduais, à época, a implementação ocorreu com base na Resolução nº 213 do CNJ, que regulamentou a apresentação de presos em flagrante a um juiz no prazo de 24 horas. A medida foi tomada em conformidade com tratados internacionais de direitos humanos assinados pelo Brasil, como a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, que ficou conhecida como Pacto de San José da Costa Rica. A adoção das audiências de custódia foi posteriormente reforçada pela Lei nº 13.964/2019 (Pacote Anticrime), que incorporou essa exigência ao Código de Processo Penal.
Desde então, as audiências de custódia são um tema recorrente de debate no Brasil, polarizando opiniões sobre seus benefícios e desafios. Criada para assegurar o respeito aos direitos humanos e evitar prisões desnecessárias, a iniciativa tem sido alvo de críticas tanto por parte da sociedade quanto de operadores do Direito.
Os defensores argumentam que as audiências de custódia representam um avanço civilizatório, alinhando o Brasil às diretrizes internacionais de direitos humanos. A Convenção Americana sobre Direitos Humanos prevê que qualquer pessoa detida deve ser prontamente apresentada a um juiz para que se avalie a legalidade da prisão e as condições em que ocorreu. Esse mecanismo permite a identificação de eventuais abusos cometidos por agentes estatais, como tortura e maus-tratos, além de possibilitar a aplicação de medidas cautelares diversas da prisão, como monitoramento eletrônico e liberdade provisória com restrições.
Por outro lado, há críticas às audiências de custódia, especialmente por parte de setores da segurança pública e de parte da população que enxerga nelas um fator de impunidade. Um dos principais argumentos contrários é de que muitas decisões acabam resultando na soltura de criminosos reincidentes ou perigosos, o que reforçaria a sensação de insegurança e impunidade. Além disso, há questionamentos sobre a estrutura e a capacidade do Judiciário de realizar tais audiências de forma eficiente, uma vez que muitos tribunais enfrentam sobrecarga processual e falta de recursos.
Outro ponto polêmico envolve a percepção de que as audiências de custódia colocam o foco excessivamente no bem-estar do preso, em detrimento da vítima e da sociedade. Críticos apontam que o sistema penal brasileiro já possui diversas garantias para os acusados, e que a prioridade deveria ser a proteção da população contra a criminalidade. Há também casos de suspeitos que são soltos em audiências de custódia e, em pouco tempo, voltam a cometer delitos, o que alimenta a desconfiança no sistema.
Diante dessas divergências, especialistas sugerem aprimoramentos no modelo atual, buscando equilibrar a garantia de direitos individuais com a necessidade de segurança pública. Algumas propostas incluem o uso mais criterioso de medidas cautelares, a implementação de melhores mecanismos de avaliação de reincidência e o fortalecimento da estrutura dos tribunais para uma análise mais detalhada de cada caso.
As audiências de custódia, portanto, continuam sendo um tema controverso, refletindo um embate entre garantias legais e a demanda por segurança. O desafio está em encontrar um meio-termo que preserve os direitos fundamentais sem comprometer a eficácia do combate ao crime.
Eleito na quarta-feira (19) como presidente da Comissão de Segurança Pública (CSP) do Senado Federal, o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) tem como uma de suas prioridades, colocar em tramitação o projeto de lei 1.286/2022, que torna obrigatória a audiência de custódia apenas nos casos em que o acusado não é reincidente ou em que tem bons antecedentes. Na prática, o projeto pode fazer com que os presos reincidentes percam o direito à audiência. De autoria do senador Angelo Coronel (PSD-BA), a matéria aguarda a definição de relator na Comissão de Segurança Pública desde 2022.
O PL 1.286/2022 altera o artigo 310 do Código de Processo Penal. O texto estabelece que, não sendo o preso reincidente ou detentor de maus antecedentes, incluindo inquéritos policiais ou ações penais em curso, o juiz deverá promover, no prazo máximo de 24 horas, audiência de custódia com a presença do acusado, seu advogado constituído ou membro da Defensoria Pública e o membro do Ministério Público.
A autoridade que se recusar a fazer a audiência de custódia no prazo estabelecido, sem motivação idônea, responderá administrativa, civil e penalmente pela omissão. Transcorridas 24 horas após o decurso do prazo estabelecido, a não realização de audiência de custódia ensejará também a ilegalidade da prisão, a ser relaxada pela autoridade competente, sem prejuízo da possibilidade de imediata decretação de prisão preventiva, estabelece o projeto.
Na justificativa do projeto, Coronel observa que a audiência de custódia é o mecanismo que, em tese, busca dar celeridade ao sistema de Justiça criminal, especialmente quanto à apreciação que os juízes devem fazer sobre a prisão em flagrante e a possibilidade de conceder ao preso os benefícios previstos no artigo 310 do Código de Processo Penal.
“Uma das finalidades da audiência de custódia é a verificação por parte do juiz de eventuais excessos na condução da prisão e maus-tratos praticados pelos policiais. Ocorre que audiências de custódia têm se revelado patente mecanismo de desrespeito aos agentes da lei e proteção indevida de criminosos, na medida em que coloca em dúvida a atuação da força policial. É verdadeira negação da boa-fé dos agentes públicos, como se toda ação policial estivesse eivada de vícios ou excessos. Nesse sentido, a audiência de custódia acaba fragilizando a credibilidade de todo o sistema de justiça criminal, dando lugar à sensação de impunidade”, ressalta Angelo Coronel, ao explicar que o projeto também busca mitigar o alto número de prisões no Brasil. Ao verificar a condição do preso e as circunstâncias do crime, avalia o senador, o juiz teria mais condições de decidir sobre a aplicação de medidas cautelares diversas da prisão. Tal medida, segundo o autor da proposição, evitaria prisões desnecessárias.
“Todo esse quadro se agrava quando se verifica que grande parte dos presos levados a essas audiências de custódia são reincidentes, quase como ‘clientes da Justiça Criminal’. Expor policiais ao constrangimento de ter suas ações questionadas por quem, vez por outra, é preso, promove sensação de fragilidade do sistema”, afirma Angelo Coronel na justificativa.