Editorial
Nos esgotos e lixões, um dos retratos do País
Por incrível que pareça, quase 1,2 milhão de brasileiros vivem em 367 mil lares sem banheiro, nem mesmo externo ou precário
Enquanto os três poderes se engalfinham em disputas de somenos importância, consumindo recursos e tempo, a maior parte do Brasil que trabalha e produz segue abandonada à própria sorte, amargando as consequências de mazelas tão antigas quanto a própria história do País. Exemplo flagrante dessa discrepância crônica pode ser constatada na política sanitária, cuja lentidão para sair do papel agrava ainda mais uma situação há muito insustentável. O Cruzeiro do Sul de ontem (24) trouxe um novo recorte do Censo de 2022 que escancara não apenas o descumprimento dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU), como o retrocesso no que se refere à universalização dos serviços. Em outras palavras, houve aumento das desigualdades.
De acordo com os dados revelados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), embora os números relativos ao esgotamento sanitários venham melhorando lentamente, 49,03 milhões de brasileiros ainda não conseguem descartar o esgoto de maneira adequada. Desse total, 39 milhões despejam seus dejetos em fossas rudimentares ou buracos, e mais de 4 milhões têm rios, lagos ou o mar como destino para os efluentes, incluindo dejetos. O restante vai para valas ou outros tipos de locais de descarte não especificados.
Em 3.505 municípios, de um total de 5.570, menos da metade da população mora em domicílios com coleta de esgoto. A situação mais crítica está na Região Norte, onde menos de 25% da população consegue fazer a destinação correta de seu esgoto. O Amapá apresenta o pior índice: por lá, apenas 10,9% dos habitantes têm acesso à rede geral de esgoto, fossa séptica ou fossa filtro, que são os sistemas de esgotamento considerados adequados pelo Plano Nacional de Saneamento Básico (Plan-Sab).
Além disso, por incrível que pareça, quase 1,2 milhão de brasileiros vivem em 367 mil lares sem banheiro, nem mesmo externo ou precário. O professor e pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz em Minas Gerais, Léo Heller, diz que esse número pode até estar subdimensionado, já que muitas pessoas têm vergonha de dizer que não têm banheiro. Isso mostra a ausência do Estado em cidades muito pequenas e nas periferias das metrópoles. No Piauí, a pior situação do País, 5% da população vivem nessas condições. O quadro é crítico em 169 municípios, onde 10% da população estavam em lares sem banheiro ou sanitário. Em todo o País, há ainda 4,5 milhões de pessoas em domicílios com instalações externas e insalubres. No outro extremo, a pesquisa mostrou que 5,4 milhões vivem em casas com quatro banheiros ou até mais.
O cenário não é muito diferente no que se refere ao descarte de resíduos sólidos. Sem acesso a um sistema de coleta de lixo ou mesmo a caçambas próprias para descarte, 18,4 milhões de brasileiros fazem o descarte final nas próprias casas ou em terrenos baldios. Conforme o Censo 2022, 15,9 milhões de brasileiros queimam o lixo em suas propriedades e mais de meio milhão o enterra no entorno das moradias. Também neste caso, há grandes discrepâncias regionais. Com 99% do seu lixo recolhido, o Estado de São Paulo apresentou o maior porcentual de população atendida por serviços de coleta, enquanto que os 69,8% dos moradores atendidos no Maranhão fazem com que aquele Estado apresente o pior indicador entre todas as unidades federativas.
As disparidades na coleta de lixo são mais visíveis quando a comparação leva em conta o tamanho dos municípios. De acordo com o levantamento do IBGE, enquanto maiores as cidades mais elevado é o índice de atendidos. Nas cidades com mais de 500 mil habitantes, 98,9% da população informou ter acesso a esse tipo de serviço. Na contramão, os municípios com até cinco mil habitantes têm, em média apenas 78,9% dos moradores atendidos pela coleta.
Entre as conclusões implícitas nesses números do Censo de 2022 estão as reações em cadeia que levam à deterioração do meio ambiente e à debilitação da saúde pública, com os seus devidos custos monetários. Problemas de saneamento básico estão ligados à transmissão de doenças, como esquistossomose e cólera, além de agravar desequilíbrios ambientais, por meio da contaminação de mananciais e rios. Já o lixo descartado inadequadamente atrai animais, como ratos e insetos, e está associado à leptospirose e à dengue, que provoca uma epidemia em várias regiões do Brasil nos primeiros meses deste ano, colocando Estados e cidades em situação de emergência.
Independentemente da interpretação que se queira dar às cifras reveladas pelo IBGE na semana que está terminando, um fato inegável é que o Brasil continua patinando no encaminhamento da questão do saneamento básico e precisa reagir o quanto antes. Para que isso ocorra, no entanto, é preciso o empenho dos integrantes dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário em todos os níveis. À população cabe exigir postura digna dos senhores senadores, deputados federais e estaduais, vereadores, presidente da República, governadores, prefeitos, ministros do STF, juízes e membros do Ministério Público.