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Editorial

No trânsito, a guerra nossa de cada dia

Cada um de nós precisa fazer um autoexame de consciência

10 de Fevereiro de 2024 às 23:01
Cruzeiro do Sul [email protected]
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Uma tríplice colisão, registrada por volta das 18h de terça-feira (6), na avenida Três de Março, no Alto da Boa Vista, em Sorocaba, causou um grande congestionamento -- o horário de pico e o trecho em obras ampliaram a confusão --, mas não deixou feridos. Até ai, nada que chame a atenção. Os detalhes revelados pela Polícia Militar é que expõem a gravidade. Primeiro, uma Fiat Strada e um Volkswagen Nivus batem de frente. O motivo teria sido a distração de um dos condutores por estar usando o celular. Em seguida, um Chevrolet Prisma que vem atrás colide com a traseira da Strada. Sem conseguir disfarçar o estado de desorientação em que se encontra, o motorista da picape levanta suspeitas de estar alcoolizado. Realizado o teste do bafômetro, vem a constatação: embriaguez. Mesmo assim, o infrator é liberado para responder ao processo em liberdade, mediante pagamento de fiança de R$ 1,4 mil, conforme determina a legislação em vigor.

Essa pequena notícia publicada pelo Cruzeiro do Sul na semana que está se encerrando é capaz de demonstrar o estado de desregramento que impera nas ruas e estradas brasileiras e ajuda a entender as estatísticas cada vez mais dramáticas da verdadeira guerra travada diariamente no trânsito. Lamentavelmente, no entanto, nem mesmo as 33 mil vidas que se perdem anualmente, em média, no País, nesse campo de batalha composto por máquinas quase perfeitas criadas para “encurtar” distâncias e “esticar” o tempo, são suficientes para nos conscientizar da responsabilidade que temos ao assumir um volante. Outros dois recortes pinçados das fartas estatísticas sobre acidentes levantadas pelos departamentos estaduais de trânsito e compiladas pelo Conselho Nacional (Contran) são suficientes para justificar a necessidade de uma guinada urgente no comportamento dos motoristas: em cerca de 75% das ocorrências registradas as causas estão diretamente ligadas à imprudência e/ou ao despreparo dos condutores; e, pior ainda, quase 80% desses casos incluem a combinação entre álcool e direção.

No entanto, apesar de gravíssimo, o fato de três a cada quatro acidentes poderem ser evitados -- simplesmente com mais atenção, preparo, sensatez e respeito às leis de trânsito -- representa apenas uma ponta do enorme iceberg que se esconde sob a tragédia do dia a dia no trânsito. O mais preocupante -- na verdade, revoltante -- é a constatação de que em pouco mais da metade das ocorrências que terminam em óbitos -- aproximadamente 53% -- pelo menos um dos condutores envolvidos está embriagado. Completando as cifras nutridas pela nefasta combinação de imprudência, negligência e ignorância de alguns motoristas, não se pode esquecer que a epidemia de irresponsabilidade se agrava ainda mais durante festejos populares -- como Carnaval -- e feriados prolongados, quando “o que vale é comemorar”.

A avalanche de acidentes que há décadas assola o Brasil configura a cruel faceta de uma tragédia recorrente, inclusive em Sorocaba. A manchete do Cruzeiro do Sul de 15 de setembro de 1961, por exemplo, já apresentava o combate à embriaguez ao volante como um difícil desafio para sociedade como um todo. Preocupadas com a quantidade e a gravidade dos acidentes registrados na rodovia Raposos Tavares, as autoridades policiais da região discutiam a adoção de punições mais rígidas aos infratores, como a prisão e a suspensão da CNH. Quase 18 anos depois, em 6 de janeiro de 1979, o jornal publicava o trágico balanço deixado pelos acidentes registrados nas rodovias do município no ano anterior: 158 óbitos e cerca de 3 mil pessoas feridas. Em todas as ocorrências, a Polícia Rodoviária constatara apenas cinco causas prováveis: imperícia, cansaço físico dos motoristas, embriaguez, excesso de velocidade e má conservação dos veículos.

Desde então, os veículos evoluíram significativamente, as ruas e rodovias ficaram mais seguras e a legislação apertou o cerco aos transgressores. Quanto àqueles atrás do volante, que têm o discernimento, pouca coisa mudou. Em 19 de março de 2023, na estrada vicinal da Represa de Itupararanga, um casal de idosos perdeu a vida quando o veículo em que trafegava foi violentamente atingido por um carro de luxo em alta velocidade, dirigido por um empresário. O acusado se recusou a fazer o teste de alcoolemia, mas a grande quantidade garrafas de bebidas -- muitas vazias -- espalhadas pelo seu carro acabava com qualquer dúvida.

Tampouco, mexer no bolso dos infratores se mostrou alternativa tão eficiente quanto se previa. Apesar do aumento no valor das multas, o Estado de São Paulo registrou no ano passado, 12.470 acidentes e 892 óbitos de motoristas com suspeita de embriaguez ao volante. Na Região Metropolitana de Sorocaba, foram 111 flagrantes de condutores comprovadamente alcoolizados nos últimos três anos.

A constatação de que a selvageria que impera no trânsito resiste às diferentes e sucessiva tentativas de controle deixa evidente a necessidade de abordagens mais contundentes e amplas. As lições do passado nos ensinam que está na hora de uma ação concentrada. A crise exige um plano que envolva todos os setores da sociedade e contemple intervenções integradas nos âmbitos educacional, fiscalizador e punitivo. A expectativa é que, os administradores, políticos, instituições e especialistas passem da teoria à prática, adotando medidas que realmente ajudem a salvar vidas.

À população, por sua vez, cabe cobrar, se educar e respeitar as leis. Cada um de nós precisa fazer um autoexame de consciência, adequar conceitos e se esforçar para eliminar tudo o que transforma nossos veículos em verdadeiras armas ambulantes. Para começar, devemos enxergar que não é apenas dirigindo sem CNH ou após consumir bebida alcoólica que expomos as nossas vidas e as de todos os que estão nas ruas e estradas a riscos mortais. Falar ao celular, ler mensagens no WhatsApp, esquecer de dar seta, seguir com o semáforo vermelho e ultrapassar os limites de velocidade, entre outras transgressões corriqueiras, são potencialmente tão letais quanto os atos cometidos pelo empresário que causou a morte do casal de idosos.