Editorial
Gillette Press do século 21
O progresso vai continuar ocorrendo e modificando a vida das pessoas. O que precisa se discutir é o aspecto ético dessa mudança
As discussões de como a Inteligência Artificial (IA) vai influenciar a vida do ser humano nos próximos anos foram destaque, este ano, em todos os cantos do planeta. Não se pode negar que essa evolução tecnológica facilita muitas operações do dia a dia. Tarefas que exigem repetição e pouco poder de decisão podem ser facilmente substituídas por robôs. A produtividade aumenta e o custo cai, o que permite que empresas e mesmo profissionais autônomos consigam melhorar o seu faturamento e, por conseguinte, seus lucros.
Só que o uso dessa IA precisa ser bem avaliado. O avanço desse tipo de tecnologia, de forma muito acelerada, pode dizimar milhões de empregos e gerar uma população de inativos que vai precisar da ajuda do Estado para sobreviver. A maioria dos governos já sofre com o pagamento dos atuais benefícios sociais e as contas públicas nem sempre fecham no azul. Imagine a chegada de um fardo ainda maior para sobrecarregar o Tesouro de cada país.
Como todos sabemos, este é um caminho sem volta. O progresso vai continuar ocorrendo e modificando a vida das pessoas. O que precisa se discutir é o aspecto ético dessa mudança e a velocidade que a sociedade pode suportar.
Além disso, há um sério debate sobre como são incluídos os dados que alimentam os sistemas de IA. Os proprietários das empresas, bilionários em sua maioria, autorizam que milhares de informações produzidas por outras pessoas sejam adicionadas aos seus modernos sistemas, sem nenhum pagamento ou remuneração por esse esforço. Esses sistemas colhem e processam essas informações produzindo variáveis daquilo que já foi criado, pensado e realizado por algum tipo de profissional.
No terreno da arquitetura, por exemplo, basta colocar no sistema de IA os projetos dos mais renomados arquitetos para que os robôs desenhem e calculem os parâmetros para a construção de uma nova casa ou edifício baseados nos traçados de ideias originais. Um novo projeto é gerado com um custo mínimo para quem produz e nada é pago para o autor original da ideia. Esse caminho também faz com que os atuais profissionais percam oportunidades de trabalho, substituídos por máquinas.
No campo das comunicações ocorre algo semelhante. Acervos centenários de jornais, revistas e outras publicações acabam sendo apropriados indevidamente e viram ponto de partida para que robôs produzam novos texto e artigos. O pior, nesse caso, é que o cruzamento de informações feito pelas máquinas nem sempre condiz com a realidade histórica.
Incomodado com o rumo das coisas, o jornal The New York Times decidiu entrar com uma ação judicial contra a OpenAI, criadora do ChatGPT, e a gigante Microsoft, seu principal investidor, por violação de direitos autorais ao utilizar seus artigos para alimentar seus avançados modelos de Inteligência Artificial.
De acordo com os advogados da empresa, as duas companhias “buscam se aproveitar do enorme investimento do Times em seu jornalismo, utilizando-o para criar produtos substitutos sem permissão ou pagamento”.
O jornal norte-americano exige uma compensação por perdas e danos, bem como uma ordem para que as empresas parem de usar seu conteúdo e destruam os dados já coletados. Além disso, levanta, de forma mais abrangente, o debate sobre os direitos autorais na era da inteligência artificial.
Apesar de não haver a possibilidade de um cálculo preciso das perdas, o jornal acredita que esse tipo de apropriação possa ter causado “bilhões de dólares em danos legais e reais”.
Os representantes das empresas de Inteligência Artificial não negam o uso indevido do conteúdo e acenam com acordos indenizatórios e ajustes de conduta, mas esse processo está longe de chegar ao fim.
Esse tipo de atitude, no campo das comunicações, não é nada novo. Há décadas foi batizado de Gillette Press. Pequenas empresas de mídia, a maioria de radiodifusão, para não contratar jornalistas, recortavam com gilete trechos de matérias publicadas nos jornais impressos. Essas notícias eram lidas no ar como se tivessem sido apuradas pela própria equipe. Só que a escala de alcance e o faturamento eram muito menores que os produzidos pelos atuais conglomerados de Inteligência Artificial.
O problema está posto. A IA veio para ficar. Só é necessário estabelecer seus limites, sua confiabilidade e a forma que vai remunerar aqueles que construíram um cabedal infinito de informações e dados ao longo da história.