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Editorial

Catar torna-se protagonista no conflito Israel-Hamas

Não à toa, Doha recebeu, nesta semana, uma série de visitas oficiais, mas com muito conteúdo de bastidores

21 de Outubro de 2023 às 23:01
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Excursão ao Catar, para a Copa, é um dos estímulos de companhia de consórcios.
Excursão ao Catar, para a Copa, é um dos estímulos de companhia de consórcios. (Crédito: KARIM JAAFAR / AFP (28/6/2022))

Em apenas 15 dias de guerra entre Israel e Hamas, ao menos 5.500 pessoas perderam suas vidas -- a grande maioria civis, entre eles mulheres, crianças e idosos. Recapitulando: o grupo terrorista palestino lançou no último dia 7 uma ofensiva sangrenta em território israelense, que deixou mais de 1.400 mortos. Em retaliação, as forças israelenses bombardearam a Faixa de Gaza incessantemente, fazendo mais 4.137 mortes do outro lado até a última sexta-feira (20). Isso, claro, sem falar nas centenas de feridos do lado israelense (e 200 sequestrados, de várias nacionalidades) e 13.162 pelo lado palestino, segundo as contas do Ministério da Saúde do Hamas, que governa o território.

As perspectivas são ainda piores, se é que isso é possível. Tanto o gabinete do primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu quanto os porta-vozes do Hamas passaram os últimos dias fazendo ameaças mútuas, destilando ódio e prometendo mais sangue. O Hamas tem como premissa básica, simplesmente, a extinção do Estado de Israel. Este, por sua vez, anunciou a intenção de matar todos os que tenham qualquer ligação com o Hamas -- para isso, fica implícita a perda de vidas palestinas, ainda que não apoiem a organização. Nenhum aceno, portanto, para o entendimento.

Pode parecer simplista, utópico até para um conflito de tamanha história e complexidade, mas é óbvio que uma mínima possibilidade de acordo passa pelo fato concreto de que, para que isso ocorra, ambos os lados têm de ceder em alguma coisa. Sem empatia, não há sequer tolerância, quanto mais convivência harmônica. Israelenses e palestinos têm seus direitos legítimos, é claro, mas um precisa admitir o direito do outro -- o que, ao que parece, não tem chance de ocorrer.

Neste cenário, a notícia de que o Hamas aceitou libertar duas mulheres entre os quase 200 reféns que fez no primeiro dia do conflito, acendeu uma fagulha de esperança para as famílias das pessoas sequestradas e também para aquelas que continuam retidas em Gaza, aguardando a chegada de ajuda humanitária. O território palestino, no qual vivem 2,4 milhões de habitantes em condições bastante difíceis, aguarda há alguns dias a chegada do auxílio que, por ora, se acumula na passagem de Rafah, na fronteira com Egito.

Mãe e filha americanas, capturadas no kibutz Nahal Oz no dia 7, foram levadas pela Cruz Vermelha em segurança ao território israelense. Para que isso acontecesse foi de fundamental importância a intermediação do Catar. Esse país, habituado a fazer a mediação entre movimentos radicais e o Ocidente, passa agora a ser um ator inevitável em qualquer negociação, inclusive na libertação dos demais reféns.

“Não haverá negociação coletiva. Cada Estado terá que negociar individualmente a libertação dos seus próprios reféns, por meio dos interlocutores habituais”, acredita Hasni Abidi, diretor do Centro de Estudos e Pesquisa sobre o Mundo Árabe e o Mediterrâneo, com sede em Genebra. Além do Catar, ele acrescenta Egito e Turquia ao seleto grupo de possíveis intermediários “que tenham estabelecido relações duradouras com o Hamas e, portanto, são os únicos autorizados a entrar em contato com os seus líderes”.

O Catar aparece como interlocutor privilegiado desde antes do anúncio da libertação das duas americanas. Afinal, trata-se de um pequeno Estado sem agenda regional, que não se preocupa com o uso político da mediação e que conhece bem o Hamas, a ponto de abrigar o seu comando político há mais de dez anos. Por outro lado, Doha, a capital do Catar, também recebe a maior base americana naquela região.

Etienne Dignat, do Centro de Pesquisas Internacionais (Ceri), com sede em Paris, lembra a recente mediação da libertação de americanos que estavam presos no Irã, para afirmar que o Catar “especializou-se na libertação de reféns”. Vale ressaltar, também, que já em 2021, o emirado convidou os talibãs a abrir um escritório em Doha, com a autorização dos Estados Unidos, para negociar a retirada das forças de Washington do Afeganistão -- mas isso foi antes do grupo radical retomar o poder.

Não à toa, Doha recebeu, nesta semana, uma série de visitas oficiais, mas com muito conteúdo de bastidores: de Jean-Yves le Drian, enviado especial da França para o Líbano; Antony Blinken, chefe da diplomacia americana; e até de diplomatas alemães visando garantir a proteção dos seus reféns.

Outros pesos pesados da região também podem -- e querem -- interferir nesses diálogos. A Turquia, por exemplo, nunca rompeu relações com Israel e, ao mesmo tempo, acolheu vários líderes do Hamas. O Egito também tem um perfil conciliador, já que tem sido o mediador entre Israel e o Hamas, como quando foi negociada a libertação do soldado israelita Gilad Shalit, em 2011. Resta torcer para que sejam bem-sucedidos.