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Editorial

Todos nós somos protagonistas no drama do trânsito

Quanto à "cabeça pensante" atrás do volante, lamentavelmente, pouca coisa mudou

27 de Março de 2023 às 23:01
Cruzeiro do Sul [email protected]
Acidente aconteceu por volta das 16h50
Acidente aconteceu por volta das 16h50 (Crédito: Divulgação )

Acidentes como o registrado na estrada da represa de Itupararanga no último 19 de março, que terminou com a morte do casal sorocabano José Rubens Martinelli e Maria Aparecida de Oliveira Martinelli, respectivamente de 60 e 54 anos, costumam reabrir as discussões sobre a eficiência dos métodos adotados no Brasil para disciplinar o trânsito, assim como a responsabilidade de cada pessoa que assume o volante de um veículo qualquer.

Como é comum acontecer após eventos trágicos -- principalmente quando envolve a possibilidade de um dos condutores estar alcoolizado, no caso o empresário Régis Hermínio Cândido, de 44 anos, a bordo de uma Mercedes -- o tema “bombou” nas redes sociais: houve críticas inflamadas à debilidade da legislação, denúncias veementes contra a incompreensível passividade dos governantes e sugestões de punições mais severas para aqueles que, mesmo sem empunhar um revólver ou uma faca, acabam tirando a vida de um ou mais seres humanos. Em seguida, no entanto, como de praxe, os ânimos se acalmaram e as cobranças “esfriaram”. Isso, até que uma nova desgraça reinicie o ciclo.

Pauta permanente nas mídias e centro de infindáveis debates, a violência no trânsito brasileiro desafia governos e especialistas desde 1893, ano em que Henrique Santos Dumont -- irmão de Alberto Santos Dumont, pai da aviação -- trouxe da Europa a primeira “carroça sem cavalos”, um Daimler movido a vapor. A primeira evidência de que o limite tênue entre o equipamento inventado para diminuir distâncias -- “esticando” o tempo dos seres humanos -- e a arma de destruição em potencial disponível nas mãos de qualquer um com dinheiro para comprar um automóvel saiu nas páginas dos jornais cariocas poucos dias após o debut da máquina então barulhenta e lerda. Um aparente defeito mecânico teria feito o carro derrapar e quase atropelar um pedestre nas esburacadas ruas da então capital brasileira.

Quatro anos depois, igualmente na antiga sede da República, uma dupla de ilustres personagens protagonizou o primeiro acidente registrado em boletim policial: um Serpollet, modelo a gasolina fabricado pela francesa Peugeot, ficou destruído após o motorista se perder em uma curva da estrada da Tijuca e bater em uma árvore. O veículo pertencia ao jornalista José do Patrocínio, mas a alavanca de direção estava a cargo de Olavo Bilac.

Passados 125 anos da histórica “barberagem” do poeta das estrelas, os carros evoluíram extraordinariamente, as ruas e rodovias ficaram mais seguras e a legislação apertou o cerco aos transgressores. Quanto à “cabeça pensante” atrás do volante, lamentavelmente, pouca coisa mudou. A avalanche de acidentes que há décadas assola o País configura a cruel faceta de um cancro incurável, inclusive em Sorocaba. Basta navegar alguns minutos pelo acervo digital do jornal Cruzeiro do Sul para constatar essa triste realidade. Em 15 de setembro de 1961, por exemplo, uma reportagem relatava as dificuldades enfrentadas pelas autoridades locais na tentativa de combater a embriaguez ao volante. Um ano e meio depois -- 23 de março de 1963 --, a manchete do jornal relatava a confusão provocada por um caminhoneiro bêbado em pleno centro da cidade, chegando, inclusive, a atropelar um guarda de trânsito e praticamente destruir uma viatura policial.

No dia 6 de janeiro de 1979, o jornal publicava o trágico balanço deixado pelos acidentes ocorridos nas rodovias do município de Sorocaba no ano anterior: 158 óbitos e cerca de 3 mil pessoas feridas. Em todas as ocorrências, a Polícia Rodoviária constatara apenas cinco causas prováveis: imperícia e/ou cansaço físico dos motoristas, embriaguez, excesso de velocidade e má conservação dos veículos.

Para não cansar o leitor com uma lista interminável de exemplos que expõem todas as facetas dessa guerra descomunal travada entre a propalada civilidade humana e o comportamento irracional que adotamos na prática, vale lembrar apenas alguns mais recentes. 26 de dezembro de 2021, avenida Washington Luiz, na zona sul de Sorocaba: imagens captadas por câmeras de segurança mostram um carro trafegando na contramão e cometendo diversas irregularidades em sequência, incluindo o atropelamento de um ciclista e a fuga sem prestar socorro à vítima; identificado, e detido nove dias depois, ele justificou o ocorrido alegando que estava fugindo após se envolver em uma briga de bar, onde estivera bebendo; além disso, constatou-se que não possuía habilitação para dirigir automóveis; a vítima, por sua vez, passou semanas internado e foi submetido a diversas cirurgias, porém, ficará marcado por sequelas pelo resto da vida.

Noite de 4 de setembro de 2022, km 4,5 da rodovia Senador José Ermírio de Moraes -- a “Castelinho”: o carro da policial penal Adriane Maria José Gallão, de 50 anos, um Ford Ka, parado em um congestionamento, foi atingido na traseira por um Porsche em altíssima velocidade; Adriane morreu no local; o causador do acidente admitiu ter ingerido bebidas alcoólicas na casa de conhecidos e resolvera acelerar ao máximo para ver a velocidade que o carro de luxo alcançava.

Governantes e legisladores têm, evidentemente, papéis importantes na reconstrução desse cenário inquietante, porém, o protagonismo cabe à própria sociedade. Os mandatários devem, sim, ser constantemente inquiridos sobre políticas públicas que levem à pacificação das ruas e estradas, mas, cada um de nós precisa fazer um exame de consciência, adequar conceitos e se esforçar para eliminar tudo o que transforma nossos veículos em verdadeiras armas bombas prestes a explodir a qualquer momento.

Para começar, devemos perceber que não é apenas dirigindo sem CNH ou após consumir bebida alcoólica que expomos as nossas vidas e as de todos os que estão nas ruas e estradas a riscos mortais. Falar ao celular, ler mensagens no WhatsApp, esquecer de dar seta, seguir com o semáforo vermelho e ultrapassar os limites de velocidade, entre outras tantas transgressões corriqueiras, são potencialmente tão letais quanto os atos cometidos pelo motorista da Mercedes que destruiu o Chevrolet Prisma de José Rubens e Maria Aparecida e tirou-lhes a vida.

Cada um de nós deve pensar seriamente nisso cada vea que for virar a chave de ignição.