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Editorial

Inversão de valores

Servidores públicos, principalmente os eleitos, parecem ter dificuldade em entender que foram escolhidos para servir o povo e não para se servir do povo

02 de Março de 2023 às 23:01
Cruzeiro do Sul [email protected]
'Nova Constituição' para o Brasil
'Nova Constituição' para o Brasil (Crédito: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil)

O Brasil precisa, urgentemente, de uma nova Constituição. A atual foi ferida de morte, na quarta-feira (1º), pelos líderes dos partidos que têm assento no Senado Federal. Em alto e bom som, eles declararam, para toda a população brasileira, que a Casa tem pouca, ou nenhuma, utilidade no atual modelo decisório do país.

Os senadores, mais uma vez, apequenaram-se diante da realidade brasileira. A decisão de encurtar a semana de trabalho e de permitir que os membros do Senado só precisem trabalhar por três semanas no mês é um tapa na cara da sociedade.

Como esses senhores e senhoras, eleitos pelo voto da maioria dos habitantes de seus Estados, terão coragem de olhar no olho do povo para justificar tal medida estapafúrdia?

O Brasil precisa, mais do que nunca, de que seus legisladores trabalhem diuturnamente para botar fim às mazelas e à desigualdade social que atingem, principalmente, os mais pobres. Ao abrir mão de produzir leis mais justas, esses altos servidores públicos, muito bem remunerados e cheios de mordomias, só demonstram sua incapacidade e falta de empatia perante seus eleitores.

A incrível decisão do Senado veio depois de quase duas semanas de folga para celebrar o Carnaval. A portas fechadas, os líderes das bancadas decidiram autoconceder-se semanas reduzidas de trabalho. O grande articulador dessa manobra foi o presidente da Casa, Rodrigo Pacheco, recém-eleito por seus pares para comandar a instituição por mais dois anos.

É o mesmo Pacheco, que se furtou a tomar decisões importantes nos últimos dois anos, permitindo que outros Poderes ferissem os direitos da população sem a devida resposta e fiscalização do Senado.

Pelo novo regimento interno, nossos senadores só votarão projetos às terças, quartas e quintas-feiras. Segundas e sextas serão dedicadas a sessões não deliberativas, o que significa que os parlamentares não precisarão trabalhar nesses dois dias, pois não será considerado falta.

Os senadores também criaram o mês de três semanas. A inovação vai funcionar da seguinte maneira: na última semana do mês, o trabalho poderá ser remoto e “com pauta tranquila”, esvaziada pela própria direção do Senado.

Na prática, o senador só precisará trabalhar nove dias num mês em Brasília. O salário atual recebido por eles é de R$ 39,2 mil, mas esse valor será reajustado no mês que vem para R$ 41,6 mil. Isso significa que para cada dia presencial trabalhado o senador receberá R$ 4.600,00.

Para se ter uma ideia do tamanho da injustiça, um brasileiro que recebe salário mínimo ganha, por dia trabalhado, R$ 50,00. Nesses cálculos foram considerados apenas o valor que vem no contracheque de cada senador.

Se levarmos em conta todas as mordomias, como funcionários, auxílio moradia, passagens de avião, carros com motorista e muito mais, o escândalo é ainda maior.

O líder do Podemos no Senado, Oriovisto Guimarães (PR), teve ainda coragem de defender em público a medida. Ele disse que essa mudança vai permitir que o senador tenha um maior contato com a base. Outra falácia imensa.

Os senadores são eleitos em pleitos majoritários por seus Estados. A base deles é difusa e não necessita de presença constante para provar que realmente estão servindo bem quem os escolheu. A função do senador é estar em Brasília propondo leis que melhorem o país.

Os senadores podem, diante da repercussão negativa, até voltar atrás e pedir desculpas ao povo, mas o estrago na imagem do Senado já foi feito. Nossa torcida é que integrantes de outros Poderes não resolvam tomar atitudes semelhantes.

É bem provável que no prédio ao lado, na Câmara dos Deputados, já deve ter muito parlamentar se coçando para pedir esse mesmo benefício conquistado pelos vizinhos. Isso sem falar nos membros do Judiciário que relutam em voltar ao trabalho presencial depois da pandemia.

Infelizmente, no Brasil, os servidores públicos, principalmente os eleitos, parecem ter uma certa dificuldade em entender que eles foram escolhidos para servir o povo e não para se servir do povo. Enquanto isso não for compreendido, enfrentaremos escândalos como esse que presenciamos agora.

Guardados os devidos exageros, só uma nova Constituição, escrita por homens realmente probos e preocupados com a sociedade, pode dar fim a tanto descalabro.