Editorial
Não é só peixe que morre pela boca
Episódios envolvendo Arthur do Val, Renan dos Santos e Kim Katiguiri expõem as enormes falhas do Movimento Brasil Livre
O Ministério Público Federal (MPF), em São Paulo, disse ontem estar analisando pedido de investigação que chegou ao órgão contra o deputado estadual Arthur do Val (sem partido) e o coordenador do Movimento Brasil Livre (MBL), Renan dos Santos. Os dois são suspeitos do crime de evasão de divisas do dinheiro doado por brasileiros a uma “missão humanitária” na Ucrânia. A suspeita de evasão de divisas foi levantada nas redes sociais por especialistas, acadêmicos e políticos. Eles apontaram que o dinheiro da doação não poderia ter sido repassado via pix para a Eslováquia, como disseram os representantes do MBL em vídeos, sem o devido registro pelas autoridades brasileiras da saída dos recursos para outro país. Em live transmitida da Eslováquia em 1º de março, Arthur do Val e Renan dos Santos pediram doações a seus seguidores no Brasil. No vídeo, Renan diz que o dinheiro recebido pelo MBL via pix seria transferido para a conta de um brasileiro que mora na Eslováquia. Essa pessoa, segundo ele, faria compras de suprimentos para posterior entrega aos ucranianos.
Apesar de grave, esse parece ser o menor dos problemas enfrentados por Arthur do Val e Renan no momento. Passados 10 dias, o caso do deputado conhecido como “Mamãe Falei” continua a deixar lições importantes. A primeira é que, nesta era digital, em que tudo é gravado, visto, ouvido, é necessário tomar muito cuidado com o que falamos. Não que o caso de Arthur do Val seja de “má interpretação”. Longe disso. Foram longos minutos falando barbaridades, discorrendo sobre a “facilidade” das mulheres ucranianas em condições de vulnerabilidade, além de outros comentários que pareciam estar saindo da boca de um adolescente inconsequente e irresponsável -- e que mesmo assim seriam deploráveis. O que dizer então de terem sido ditos por um homem feito, na casa dos 30 anos e, pior, um parlamentar eleito com milhares de votos e pré-candidato ao governo do estado de São Paulo? E tudo isso em uma suposta “missão humanitária” na Ucrânia? É repugnante, asqueroso e revoltante -- no mínimo.
Ao agir como um adolescente, expondo mulheres vulneráveis, e revelando a intenção de realizar um roteiro de turismo sexual, junto com seu amigo já contumaz na prática, Arthur do Val revelou-se um grande canalha.
De qualquer forma, se os desvios de conduta e caráter tivessem ficado restritos a seus pensamentos, ele não teria arruinado sua carreira política e pessoal, nem passado essa vergonha em rede nacional. Agora, perdeu a namorada, perdeu milhares de seguidores e eleitores, perdeu a pré-candidatura ao governo e, muito provavelmente, perderá o mandato de deputado estadual. Ao menos 26 deputados, representantes da esquerda e da direita, pedem a cassação do parlamentar. O Conselho de Ética da Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) já recebeu 12 pedidos de cassação, nove individuais e três coletivos.
Após a divulgação dos áudios sexistas, o parlamentar foi desfiliado do Podemos e também saiu do Movimento Brasil Livre (MBL). Falando nisso, o caso também expõe as falhas e rachaduras do MBL. Ativo desde 2014, esse movimento político liberal e conservador surgiu como um relâmpago no cenário nacional. Formado em sua maioria por jovens de menos de 30 anos conhecidos por discursos incisivos e uma pesada atuação em redes sociais, o MBL é uma espécie de “startup de protestos”. Pegando carona na Operação Lava Jato, a garotada do Movimento ganhou as ruas. Turbinados por sua atuação digital, tiveram projeção e conseguiram eleger vários membros. A questão é que praticamente todo o grupo, tão logo atingiu seus objetivos nas urnas, virou as costas para quem os ajudou a chegar lá e, principalmente, para seus eleitores. Em diversas ocasiões se uniram com aqueles que diziam ser “inimigos” e praticamente abandonaram as bandeiras que defendiam. Jovens que sempre posaram de “bom moço” na frente das câmeras meteram os pés pelas mãos de forma repetitiva.
Pouco antes dos áudios de Arthur do Val vazarem, um outro expoente do MLB, o deputado federal Kim Katiguiri (DEM-SP), envolveu-se em polêmica. Durante famoso podcast, Kim não apenas não rebateu o apresentador, que insistia que o partido nazista deveria ser reconhecido por lei, como disse considerar que a Alemanha errou ao ter criminalizado o partido nazista. O apresentador, conhecido como Monark, foi defenestrado do programa e “cancelado” País afora. Kim pediu desculpas, mas ficou em situação bem desconfortável.
E para mostrar que a vida não anda fácil para os membros do MBL, Renan dos Santos e sua família agora são acusados pelo Ministério Público de usar um “laranja” para fazer transações vultosas envolvendo a empresa familiar. Os dados são da Operação Juno Moneta, de 2020, deflagrada para investigar suspeita de lavagem de dinheiro. Em um dos relatórios, o Fisco diz que o “segredo do sucesso” da família é “simples”: “Eles não declaram nem pagam os tributos devidos, e, com isso, enriquecem com a apropriação indevida dos tributos pagos pelos consumidores finais”. Mesmo inativas e cheias de dívidas, as empresas movimentam valores altos e fazem depósitos nas contas da família Santos, segundo o MP. A Justiça autorizou e os investigadores aguardam resposta dos bancos para análise da quebra de sigilo.
Ou seja, para quem chegou dizendo ser a “nova política”, essa garotada do MBL se equivocou rapidamente. E voltando a Arthur do Val, como disse o filósofo grego Epicuro, “caráter é aquilo que você é quando ninguém está vendo” -- ou quando acha que não está sendo gravado.