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Editorial

Cara de pau sem limites

Esquema envolvendo servidores do Detran adulterou documentos de 10 mil veículos, sendo 3,3 mil do Exército, em fraude de meio bilhão de reais

26 de Fevereiro de 2022 às 00:01
Cruzeiro do Sul [email protected]
(Crédito: Divulgação)

Quando se junta uma frota de veículos gigantesca como a do Brasil com a capacidade criminosa de golpistas e a ânsia de ganharem dinheiro fácil, o resultado é inevitável. Periodicamente, somos surpreendidos com novos golpes e escândalos envolvendo o sistema veicular nacional.

O último deles foi revelado nesta semana quando a Justiça Federal afastou de suas funções 95 servidores do Departamento de Trânsito (Detran) após investigação da Polícia Federal (PF) apontar suspeita de envolvimento deles em um esquema de fraudes de documentos de veículos que teria movimentado R$ 500 milhões. Ou seja, meio bilhão!

Do total de investigados, 85 atuam no Detran do Estado de São Paulo, sete no Tocantins e três em Minas Gerais. Cerca de 20 despachantes também foram afastados das funções. Os 85 investigados em São Paulo trabalham em 20 unidades do Detran espalhadas pelo Estado.

A operação foi realizada anteontem por 400 homens da PF e da Polícia Rodoviária Federal que cumpriram 86 mandados de busca e apreensão e seis de prisão, em 11 Estados. Carros de luxo e R$ 500 mil em dinheiro foram apreendidos, e cinco pessoas foram presas. Batizada de Fiat Lux, a operação começou há dois anos e identificou pelo menos 10 mil veículos com documentos e placas adulterados. Segundo a PF, a quadrilha falsificava o registro de carros e tinha a participação de servidores do Detran e de despachantes. Em dez meses de atuação, foram recuperados cerca de R$ 35 milhões em veículos entre eles caminhões, caminhonetes e automóveis de luxo.

Mas a incredulidade não para por aí. Para se ter ideia da ousadia e da cara de pau dos criminosos, a investigação revelou também que o número dos chassis de 3,3 mil carros oficiais do Exército foram usados para esquentar carros roubados. Os documentos eram falsificados e assim o veículo passava a rodar pelas ruas como se fosse legal -- a investigação não aponta a participação de integrantes do Exército nas fraudes. Os golpistas não perdoaram nem o Exército.

Inclusive, o inquérito policial, instaurado no fim de 2020, teve origem justamente após a detecção da clonagem dos veículos do Exército. Segundo a polícia, os criminosos também criavam veículos fictícios no Sistema Federal da Secretaria Nacional de Trânsito, permitindo a realização de financiamentos e a participação em consórcios. Esses automóveis eram dados como garantia em operações financeiras.

Os servidores ainda inseriam no sistema federal de veículos carros comprados na Zona Franca de Manaus que têm isenção de PIS e Confins, e emplacavam indevidamente esses veículos em São Paulo para burlar a fiscalização. Em seguida, eram revendidos sem o recolhimento de impostos, com lucro de até R$ 40 mil sobre cada unidade, normalmente caminhonetes. Foi identificado o uso de documentos falsificados em aproximadamente 300 automóveis nessas condições.

Os envolvidos podem responder por uso de dados falsos, lavagem de dinheiro, sonegação tributária e organização criminosa. Por enquanto, o afastamento dos servidores do Detran é “judicial e preventivo” -- processos administrativos serão abertos para apurar a conduta de cada funcionário. O Detran de São Paulo informou que cumpriu a determinação judicial e todos os servidores foram afastados imediatamente. Disse também que suspendeu os despachantes citados na intimação e uma franqueada da empresa de vistoria.

A certeza de que nunca seriam pegos era tamanha que há servidores com até 70 inserções fraudulentas, indicando participação ostensiva no esquema. É a certeza da impunidade, algo tremendamente nocivo para o Brasil.

Enfim, que o Detran aprimore os procedimentos e sistemas de segurança, e também a vigilância sobre seus servidores. E que a Justiça seja firme e implacável com tais criminosos, não permitindo manobras jurídicas para evitar a punição que merecem. É o que toda a sociedade espera.