Editorial
Quem paga os gatos somos nós
Se não houvesse desvios de energia, a tarifa cobrada dos consumidores mensalmente poderia ser até 4,35% menor do que a praticada atualmente

Com 2.846 flagrantes registrados apenas no ano passado, Sorocaba continua liderando o vergonhoso ranking das fraudes e furtos de energia elétrica -- os chamados gatos -- em toda a área abastecida pela CPFL Piratininga. De acordo com os dados obtidos pelo jornal Cruzeiro do Sul e divulgados com exclusividade na edição deste sábado (19), em 2021, a cidade concentrou quase 30% das 9.671 irregularidades confirmadas na região composta por 15 municípios. Do total de 63,6 GWh (gigawatts hora) desviados no âmbito da concessionária, 15,7 GWh foram consumidos irregularmente em Sorocaba. Isso significa que muita gente -- o equivalente a 29 mil residências -- deixou de pagar ou pagou menos pela eletricidade que consumiu no ano passado.
Como em anos anteriores, os números das falcatruas relacionadas à energia elétrica em Sorocaba chamam a atenção. Embora o território abrangido pela CPFL Piratininga seja constituído por diversas cidades de médio e pequeno número de habitantes, também inclui centros maiores. Para se ter uma ideia de como a prática está arraigada no município, basta citar que a vice-campeã regional de ligações ilegais de eletricidade, Indaiatuba, contabilizou 1.598 ocorrências em 2021, pouca coisa mais do que a metade dos casos sorocabanos. A disparidade é ainda maior quando a comparação é feita com Jundiaí, cujo porte é bastante semelhante ao de Sorocaba. Lá foram constatados 427 ligações clandestinas no mesmo período, ou seja, apenas 15% do total registrado em Sorocaba.
Alguns leitores podem estar imaginando que não têm nada a ver com isso e considerando que o prejuízo vai simplesmente parar na contabilidade da concessionária. Afinal de contas, é ela que não está faturando. Na prática, no entanto, isso não é o que acontece. A conta dos gatos na eletricidade acaba chegando para todos os consumidores. A CPFL -- e as demais operadoras do sistema no País -- consegue mensurar as perdas de energia que acontecem no processo de distribuição, ou seja, antes de passar pelos medidores dos compradores. O montante dissipado por meio das fugas consideradas não técnicas, incluindo as fraudes, é rateado entre todos os clientes. Esse repasse já é previsto pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) e consta nos contratos de concessão.
Segundo informações do Instituto Acende Brasil, se não houvesse desvios de energia, a tarifa cobrada dos consumidores mensalmente poderia ser até 4,35% menor do que a praticada atualmente. Levando em consideração as inúmeras outras despesas extraordinárias que já vêm encarecendo a conta paga pelos brasileiros nos últimos anos -- desde as bandeiras tarifárias para cobrir a elevação dos custos de produção em tempos de crise hídrica, os múltiplos impostos, seguros e, em muitas cidades, as escorchantes taxas de iluminação pública, entre tantos outros penduricalhos --, os bolsos dos cidadãos e até dos empresários poderiam estar menos comprometidos.
Seja por carência financeira ou para obtenção de lucro fácil, os gatos de serviços são práticas ilegais comuns em todos os recantos do País. Os furtos e fraudes abrangem desde as redes de energia elétrica e de água encanada até os sistemas de transmissão de sinais de TV a cabo e de internet. Vale destacar, no entanto, que os inconvenientes provocados pelo consumo ilegal não se resumem à democratização dos custos. O rastro de consequências se estende à deterioração da qualidade dos próprios serviços, assim como à potencialização dos riscos de interrupções e de acidentes. Além disso, a prática figura na lista de crimes previstos no Código Penal Brasileiro -- cuja punição varia de multa à prisão por até oito anos.
Integrantes do ilimitado repertório de falcatruas conhecidas como jeitinho brasileiro de levar vantagem em tudo, os gatos nos serviços vêm sendo combatidos por meio de custosos programas desenvolvidos por empresas e autarquias em todas as regiões. Não obstante as cifras superlativas envolvendo consumo ilegal e prejuízos, chama a atenção outro fato revelado pelas fiscalizações e operações destinadas a refrear esse tipo de evasão: furtos e fraudes relacionados à energia elétrica, água e sinais de TV e internet não são condutas exclusivas das classes de rendas mais baixas ou famílias residentes nas periferias urbanas. Flagrantes efetuados pelas forças policiais constatam crimes cometidos por empreendimentos de diversas áreas de atuação e por moradores de bairros de classes média e alta.
Como ficou demonstrado, o popular gato exprime, na verdade, graves problemas sociais e culturais que requerem respostas efetivas. De um lado, políticas públicas eficientes, e, de outro, a conscientização da sociedade quanto aos seus malefícios. Inexplicavelmente, tanto a transgressão como as suas consequências continuam sendo tratadas com excessiva permissividade.