Editorial
A hipocrisia da militância seletiva
Assassinatos de Moïse, no Rio, e da soldado da PM Tatiana Regina, em Guarulhos, mostram a diferença de tratamento

Uma das coisas mais danosas da sociedade atual é a indignação seletiva. Já virou rotina. A cada dia, novos exemplos escancaram essa situação. Um deles coloca frente a frente dois assassinatos, o do congolês Moïse Kabaganbe, no Rio, e o da soldado Tatiana Regina Reis da Silva, da Polícia Militar, em Guarulhos, perto da capital paulista.
Na capital fluminense, Moïse foi brutalmente espancado por três agressores e morreu em um quiosque na Barra da Tijuca. O motivo da briga teria sido um desentendimento após ele cobrar dias trabalhados no local.
No bairro Taboão, em Guarulhos, a soldado Tatiana -- mulher negra e mãe de três filhos -- foi morta a tiros na frente de casa quando conversava com um amigo. Ela estava de folga, à paisana, quando dois homens se aproximaram e dispararam. Tatiana até conseguiu sacar sua arma e revidar, atirando contra os bandidos, mas acabou sendo atingida no abdômen e no peito. Levada para um hospital, não resistiu aos ferimentos.
Um dos assassinos de Tatiana foi preso ao dar entrada em um pronto-socorro, com um ferimento de bala na perna. Graças às nossas magníficas leis, não podemos dizer o nome desse bandido aqui, porque ele tem 15 anos e não atingiu a maioridade penal. Pouco antes do crime, o rapaz havia sido “apreendido” por furtar um carro, mas ganhou a liberdade para voltar a cometer crimes. Detalhe: o bandido possui uma tatuagem com a figura de um palhaço -- que identifica entre os bandidos o assassino de policiais, garantindo-lhes regalias e respeito na prisão. Matar policiais, para esses facínoras, representa uma grande honra.
Dois casos absurdos, dois casos inaceitáveis. Tanto Moïse quanto a soldado são negros. As igualdades das histórias, porém, acabam por aí. Enquanto Moïse tem sido tratado como mártir, muita gente nem sabe do crime envolvendo a soldado militar.
Ninguém aqui pretende diminuir a indignação e a revolta com o assassinato do congolês. Muito menos desmerecer todas as homenagens que ele e sua família têm recebido. Pelo contrário. Eles certamente precisam e merecem todo o apoio possível, ainda mais quando vem a público que a família teria sido ameaçada -- há fortes indícios de que o quiosque onde o crime ocorreu tem como dono um policial.
Agora, o que chama a atenção mesmo é a falta de indignação, a falta de apoio e de solidariedade à família da soldado Tatiana, de apenas 36 anos. Seu velório foi acompanhado com grande comoção pela comunidade local e pelo contingente do 2º Batalhão de Choque da Polícia Militar, onde estava lotada. Mas sua morte não teve protesto popular, nenhuma manifestação de entidades de defesa dos direitos humanos, nenhuma indignação de entidades de defesa da mulher. Nada, absolutamente nada.
É como se o fato de ser policial pesasse contra a vítima. E vejam onde chega a insensibilidade humana, a falta de caráter e a hipocrisia. Alguns influenciadores das redes sociais -- os mesmos que bradam e saem em defesa de minorias e causas sociais -- tiveram a pachorra de usar uma hashtag com os dizeres “vidas negras importam, menos quando é a de um policial” para se referir ao episódio envolvendo a soldado. Além de ser uma completa inversão de valores, é de uma canalhice sem tamanho.
Na visão dessa turma, todo policial é ruim. Eles defendem bandidos, criminosos e assassinos, mas são incapazes de defender uma mulher negra, mãe e profissional exemplar pelo simples fato de ser policial. Não há maior aberração do que isso.
As pessoas precisam entender que criminoso é criminoso, não importa a cor, a raça, a classe social nem a profissão. Os policiais que cometem crimes são criminosos e têm de ser tratados como tal. Mas nem todo policial é criminoso. Muito pelo contrário. Há milhares deles que dão a vida para defender inocentes e desconhecidos. Do mesmo modo, é preciso entender que pessoas que cometem crimes são criminosos e não vítimas da sociedade. Independentemente de cor, gênero e outras características.
A reformulação de nossas leis, tornando-as mais rígidas, poderia ter como consequência um Judiciário mais firme. Assim, os criminosos de Moïse e Tatiana passariam o resto da vida atrás das grades. É o que merecem. Pela repercussão do caso, os assassinos do congolês certamente ficarão presos por um bom tempo. Infelizmente, no caso da soldado, a gente já sabe o que vai acontecer. Muito provavelmente, nada.