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Editorial

País empacado na Lei de Gerson

Fraudes dos mais variados tipos se repetem diuturnamente em todo o País, causando prejuízos à sociedade, retardando a recuperação econômica e aprofundando o abismo social

26 de Dezembro de 2021 às 00:01
Cruzeiro do Sul [email protected]
(Crédito: Reprodução / Ministério da Saúde)

Concentrar nos governantes a culpa por todas as mazelas que corroem o País e o impedem de dar certo é, no mínimo, simplificar uma conjuntura muito mais complexa e arraigada. Lamentavelmente, burlar, enganar, tapear, trapacear, iludir, ludibriar, manipular e tantos outros sinônimos para o execrável verbo fraudar fazem parte da cultura nacional em todos os âmbitos. Desde os alicerces do Brasil colonial, a corrupção se manifesta como uma via de mão dupla: de um lado, homens públicos praticando tráfico de influência, nepotismo, favorecimento, abuso de autoridade, desvio de recursos, superfaturamento etc. etc.; do outro, homens do povo vendendo seus votos, falsificando, sonegando impostos, desrespeitando leis e tantas outras imoralidades travestidas de “vantagens”.

Aliás, uma das premissas mais difundidas no País é exatamente uma justificativa capenga para a praxe de aproveitar toda e qualquer oportunidade para se obter alguma forma de lucro. A chamada Lei de Gérson, por si só uma aberração, estabelece que obter vantagens sempre, mesmo que esta seja gerada em condições escusas, é algo natural, normal e aceitável. Na prática, defende que se algo pode dar errado, não tem problema, pois mesmo que der errado, a gente dá um jeito de fazer parecer certo. Gérson de Oliveira foi quem ficou com a fama pela frase que batizou o jeitinho brasileiro, mas o fato é que a maioria do povo já se beneficiou com tal “lei” e ainda se gaba por ser mundialmente famosos por isso.

Para o psicólogo e escritor Osmar de Almeida Santos, muitos brasileiros -- tanto governantes como governados -- são portadores de uma doença, um distúrbio psicológico grave que tem causado defeitos na formação da psique nacional e mantido o País no atraso. No livro “O Brasil que não dá certo!” (Textonovo; 2014) o pesquisador analisa o psiquismo brasileiro e o compara com o de outros povos em melhor estágio de desenvolvimento e conclui que nossa psique doentia é responsável pela aceitação da corrupção, pela falta de inteligência social e de tudo que nos mantém acorrentados ao atraso. Em resumo: nossa psique imatura não contribui para a construção no Brasil de uma sociedade abundante, madura, eficiente e humanista.

Por sua vez, a sensação de impunidade à ilicitude e a práxis de que, em certos casos, o crime pode compensar, agem como catalisadores dessa reação química antinatural. A bola de neve cresce a tal ponto que algumas pessoas passam a colocar em dúvida que a honestidade seja um vantagem. Exemplos de supostos enriquecimentos fáceis levam outros a considerar que ser honesto é uma desvantagem, principalmente no mundo dos negócios. E engana-se quem julga que a desonestidade se manifesta apenas por meio de atos concretos. Na maioria das vezes, mentir ou falsear a verdade causa tantos danos quanto um roubo, por exemplo. Alguns anos atrás, uma pesquisa realizada por Robert Feldman, psicólogo da Universidade de Massachusetts, em Amherst (EUA), concluiu que 60% dos adultos mentem pelo menos uma vez durante uma conversa de dez minutos.

Fraudes cometidas sob a justificativa da necessidade e da pobreza, por exemplo, estão entre as que mais cresceram durante a crise mundial provocada pela pandemia de Covid-19. De acordo com o Ministério da Cidadania, cerca de 4 milhões de brasileiros se cadastraram para receber o auxílio emergencial de R$ 600 sem ter direito ao benefício. O pior é que aproximadamente 2,6 milhões destes conseguiram burlar os sistemas de controle do governo federal e sacaram indevidamente R$ 4,8 bilhões dos recursos públicos, ou seja, dinheiro proveniente dos impostos pagos pelos trabalhadores e empresários brasileiros.

Na semana que passou, o Cruzeiro do Sul constatou uma fraude que estaria ocorrendo já há algum tempo dentro do território sorocabano e causando prejuízos aos contribuintes e aos cofres municipais. De acordo com denúncias feitas por internautas, famílias beneficiadas pelo programa de complementação alimentar da Secretaria Municipal de Educação (Sedu) estariam vendendo as cestas básicas que recebem. A prática foi constatada por meio de um grupo sorocabano de vendas de uma rede social. A Sedu se manifestou dizendo que não consente essa prática. Conforme apurado pelo jornal, as publicações vendendo as chamadas “supercestas”’ são acompanhadas de perfis “fake”. Em um dos casos, o perfil aponta um jovem estudante da rede particular. O vendedor anuncia, por R$ 70,00, os mesmos produtos oferecidos para estudantes da rede municipal. Segundo a Sedu, as supercestas são um direito dos estudantes matriculados na Rede Municipal de Ensino e essa suposta ação não é, de forma alguma, consentida.

Situações como essas proliferam. Fraudes dos mais variados tipos se repetem diuturnamente em todo o País, causando prejuízos à sociedade, retardando a recuperação econômica e aprofundando o abismo social. A boa notícias é que existem formas de extirpar esse cancro que corrói os recursos já escassos da Nação. O caminho, a exemplo do que ocorre na grande maioria das adversidades nacionais, passa pela educação e se complementa no cumprimento das leis. Portanto, é uma tarefa urgente e que compete a todos nós.