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Editorial

Reflexões sobre um julgamento

Jurisprudência e falta de responsabilização do poder público chamam a atenção no julgamento do incêndio na boate Kiss

17 de Dezembro de 2021 às 00:01
Cruzeiro do Sul [email protected]
(Crédito: Fernando Frazão / Agência Brasil)

Menos de 24 horas após o presidente do Supremo Tribunal Federal, Luiz Fux, suspender o habeas corpus que havia sido dado aos réus, os quatro condenados pelas mortes ocorridas no incêndio da boate Kiss se entregaram à Justiça e começaram a cumprir suas penas.

Para acatar o pedido do Ministério Público, Fux considerou “a dimensão e a extensão dos fatos criminosos, bem como seus impactos para as comunidades local, nacional e internacional”. Segundo o ministro, “ao impedir a imediata execução da pena, ao arrepio da lei e da jurisprudência, a decisão impugnada abala a confiança da população na credibilidade das instituições públicas, bem como o necessário senso coletivo de cumprimento da lei e de ordenação social”.

Nessa última passagem, Fux se referia ao habeas corpus dado pelo desembargador Manuel José Martinez Lucas, que concedeu o direito dos quatro réus recorrerem em liberdade. A prisão dos condenados havia sido decretada na sexta (10), mas eles ainda estavam respondendo em liberdade por conta do habeas corpus.

A tragédia aconteceu em 27 de janeiro de 2013, em Santa Maria (RS), e chocou o País. Naquela fatídica noite a boate Kiss sediava uma festa universitária. No palco, se apresentava a banda Gurizada Fandangueira, quando um dos integrantes acionou um artefato pirotécnico cujas centelhas atingiram parte do teto do prédio, incorreta e absurdamente revestido de espuma altamente inflamável e tóxica. O incêndio se alastrou rapidamente, causando a morte de 242 pessoas e deixando mais 636 feridos.

Porém, somente agora, quase nove anos depois, foi realizado o julgamento. Após 10 dias de trabalhos -- o mais longo da história do Poder Judiciário do Rio Grande do Sul --, os quatro réus foram condenados por homicídio com dolo eventual. As penas aos dois sócios da boate, ao vocalista da banda que empunhou o artefato e ao auxiliar da banda que acendeu o dispositivo variam entre 18 anos e 22,5 anos de prisão. O regime inicial é fechado.

O incêndio na boate Kiss foi uma tragédia sem proporções. Evidentemente que há o componente da fatalidade, mas falam mais alto a irresponsabilidade e inconsequência dos envolvidos.

O julgamento também chama a atenção por algumas coisas -- além da demora para julgarem o caso. A condenação por dolo eventual -- quando o autor assume o risco de causar a morte -- é inédita no Brasil para esse tipo de crime. Segundo especialistas, pode se transformar em jurisprudência para ocorrências desse tipo. Portanto, boates e locais de reunião de público têm de ser seguros para as pessoas.

Outra coisa que chama a atenção, de forma negativa, é a falta de responsabilização do poder público -- autoridades e agentes responsáveis pelas fiscalizações da casa noturna. Afinal, como é possível nenhum agente público ter sido condenado no episódio? E a prefeitura? E as secretarias? E os Bombeiros? E os órgãos de vigilância? Nenhum deles têm participação na tragédia? E quem vistoriou a instalação de espuma? E quem vistoriou os extintores de incêndio?

Infelizmente, muita gente culpada nessa história nem sequer chegou a ser citada, e toda a culpa foi direcionada somente aos quatro acusados. Muita gente, por exemplo, morreu pelo fato de existir somente uma saída de emergência, de pequena dimensão e ainda obstruída por uma grade na frente. Quem forneceu o alvará para o funcionamento da casa nessas condições?

Os réus que foram considerados culpados pelo Tribunal do Júri têm as suas responsabilidades, sim, mas eles foram literalmente os que acenderam o estopim desta bomba que foi criada por uma sucessão de erros e que envolve vários órgãos como prefeitura, Ministério Público e até o Corpo de Bombeiros. Se cada um desses entes tivesse feito seu trabalho e seguido as leis e normas à risca, certamente a boate não estaria funcionando naquele dia.

Culpar somente os empresários e membros da banda é fácil diante de tantos questionamentos. Fica a sensação de que foi feita justiça parcial, pois a punição foi apenas para a ponta mais fraca da corda. Ainda estamos distantes da justiça completa e efetiva.