Buscar no Cruzeiro

Buscar

Editorial

Cartas traduzidas do tupi: raridade

Em trabalho brilhante, primeira tradução do tupi de cartas feitas pelos indígenas retrata a Insurreição Pernambucana e momentos importantes do Brasil colonial

09 de Novembro de 2021 às 00:01
Cruzeiro do Sul [email protected]
(Crédito: Óleo sobre tela por Victor Meirelles, 1879)

Um estudo inédito e que comprova, entre outras coisas, a riqueza da história da formação do Brasil acaba de ser concluído. Trata-se da tradução de seis cartas em tupi trocadas entre indígenas no século 17 durante a invasão holandesa no Nordeste. Para se ter ideia da importância, é o primeiro documento da história escrito em tupi por e para indígenas. As cartas são estudadas desde o século 19 e os originais estão guardados na Biblioteca Real de Haia, na Holanda.

O trabalho foi feito pelo professor Eduardo Navarro, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP) e a tradução deve ser publicada em breve pelo Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi, de Belém, no Pará.

No processo, uma das principais dificuldades foi decifrar a letra e a ortografia das cartas. O idioma tupi era somente falado, mas os jesuítas da época criaram a representação escrita. Por isso, são raros documentos escritos redigidos pelos próprios indígenas. A tradução dessas seis cartas só foi possível com a ajuda de um dicionário de tupi, que foi publicado em 2013, também de autoria de Navarro. Segundo ele, as correspondências foram entregues na mão do historiador e engenheiro Teodoro Sampaio, primeiro a se debruçar sobre os textos. Contudo, Sampaio não conseguiu traduzi-los, e o mistério seguiu. Depois, o linguista indígena Aryon Rodrigues, da Universidade de Campinas (Unicamp), chegou a ir à Holanda em busca das cartas, mas também não teve sucesso na tradução. Foi graças à pesquisa de Aryon que Navarro teve o primeiro contato com os textos, nos anos 90. A tradução, contudo, teve de esperar a compilação de um dicionário de tupi, algo que aconteceu somente em 2013, com a publicação do “Dicionário de Tupi Antigo: a Língua Indígena Clássica do Brasil”, do próprio Navarro.

As cartas revelam diálogos de homens que lutavam entre si durante uma guerra religiosa travada entre portugueses e holandeses, conhecida como Insurreição Pernambucana. De um lado, os indígenas protestantes, apoiadores dos holandeses que invadiram o Nordeste brasileiro; do outro, indígenas que defendiam o governo português. Escritas no ano de 1645, as correspondências envolvem alguns dos principais combatentes da Insurreição Pernambucana, como Felipe Camarão, chefe nativo dos índios potiguares e alinhado aos interesses de Portugal. Durante a guerra, ele organizou diversas ações de guerrilha que se revelaram essenciais para conter o avanço dos holandeses no Nordeste, segundo historiadores. Nas cartas, Camarão pede a seus parentes Pedro Poti e Antônio Paraupaba, indígenas protestantes, que abandonassem os holandeses. “Por que faço guerra com gente de nosso sangue, se vocês são os verdadeiros habitantes desta terra? Será que falta compaixão para com nossa gente?”, pergunta Camarão ao cacique Poti, em um dos textos. Ele diz ainda que, embora os holandeses tenham dado títulos aos indígenas que se juntaram a eles, essas honrarias não eram consideradas válidas pelos portugueses. Ou seja, diferentemente do que ocorria quando um oficial holandês era capturado, os índios não seriam poupados. Os holandeses tinham a política de fazer alianças com os índios por meio da concessão de liberdade e de cargos e títulos. Em 1649, Poti foi capturado pelos portugueses. Ele morreu alguns anos depois de sua prisão, a bordo de um navio no qual era conduzido para ser julgado em Portugal.

Os textos também confirmam uma prática da época. Muitos indígenas foram catequizados e alfabetizados pelos jesuítas, e alguns chegaram a ser enviados para escolas na Europa onde aprendiam línguas e culturas da metrópole. Os indígenas autores das cartas eram homens letrados, de cargos importantes na colônia. É o caso de Antônio Paraupaba, outro indígena que lutou ao lado dos holandeses e recebeu cartas de Camarão. Em 1625, ele foi, com outros índios potiguaras, para os Países Baixos (Holanda), onde aprendeu o idioma. De volta ao Brasil, passou a atuar como intérprete entre os holandeses e os indígenas e, entre 1645 e 1649 assumiu o cargo de capitão e regedor do Rio Grande do Norte.

As correspondências revelam ainda os nomes de outros combatentes indígenas e detalhes sobre algumas batalhas, além de lamentação sobre a perda de tradições dos potiguares e o fim de tribos históricas da região.

Assim que a tradução veio a público, surgiram questionamentos e posicionamentos. Uns defendendo os indígenas e outros atacando-os. Independentemente disso, há que se apreciar e valorizar a notável trajetória do Brasil, dono de uma história linda e rica. Também é curioso notar que muitas situações se repetem ao longo da história. Afinal, séculos atrás, o País estava dividido. Qualquer semelhança com os dias atuais não é coincidência.

Enfim, trata-se de uma descoberta fantástica, única e comovente! Um brilhante e inestimável trabalho.