Editorial
Vexame americano no Afeganistão
As chocantes imagens da retomada de Cabul pelo Taleban expõem os sucessivos erros dos últimos governos americanos
As imagens são impressionantes e rodaram o mundo. Aeroporto invadido, pessoas desesperadas tentando embarcar em qualquer aeronave, gente dependurada em aviões e despencando para a morte segundos depois da decolagem. As cenas do Afeganistão vistas nas últimas 48 horas são de embrulhar o estômago. E elas são, infelizmente, apenas a ponta do iceberg.
A inesperada -- não pelo fato, mas por ter ocorrido em uma ofensiva-relâmpago -- retomada da capital Cabul pelo Taleban é mais um capítulo de uma novela sangrenta, triste e recheada de erros. É o desfecho de uma história que começou 20 anos atrás, quando os Estados Unidos, na tentativa de retaliar os terroristas que derrubaram as torres gêmeas do World Trade Center, invadiram o Afeganistão para tentar acabar com o Taleban, movimento fundamentalista e nacionalista islâmico, e considerado uma organização terrorista. Não conseguiram, claro. E agora são obrigados a se retirar de forma melancólica e vergonhosa.
As imagens lembram a queda de Saigon, em abril de 1975, quando helicópteros tiveram de resgatar diplomatas americanos no telhado da embaixada dos EUA enquanto estrangeiros e moradores locais tentavam invadir o local para fugir dos vietcongs. A tomada de Saigon decretou a derrota americana na guerra do Vietnã.
Décadas depois parece que os americanos ainda não aprenderam que não é nada simples ser o xerife do mundo e interferir nos destinos de algumas nações, por mais que possa haver alguma boa intenção por trás disso. Pela segunda vez em meio século, a maior superpotência do planeta é escorraçada por um bando de guerrilheiros. O mais triste é que o sacrifício de tantos americanos que lutaram e morreram tentando acabar com o terrorismo parece agora ter sido em vão. Além das milhares de mortes e destruição que a guerra levou ao Afeganistão. Uma lástima geral.
Ficou claro o fracasso dos americanos na região. A culpa perpassa por todas as administrações dos EUA desde setembro de 2001. O maior culpado, evidentemente, é George W. Bush, que levou o país à guerra baseado muitas vezes em fake news, como no episódio das armas de destruição em massa que nunca foram encontradas no Iraque. Mesmo com dois mandatos, seu sucessor, Barack Obama, também não conseguiu resolver a questão. Resignado, Donald Trump aceitou a derrota e finalmente tomou a decisão de o país deixar o Afeganistão quando dois terços dos americanos se mostraram a favor da retirada. Mas sobrou para Biden pagar o mico de expor toda a incompetência do atual governo ao não saber o que estava acontecendo e não se precaver para a rápida ofensiva do Taleban sobre Cabul.
É consenso entre os analistas que o desastre na retirada dos EUA do Afeganistão é um dos maiores fiascos da política externa americana. Não pela decisão de remover os 2,5 mil militares ainda presentes no país após 20 anos de guerra e, sim, pela demonstração de não estarem preparados para o avanço inimigo. O Pentágono, o Departamento de Estado e os serviços de inteligência americanos não conseguiram prever este final melancólico.
Assim como o fracasso no resgate dos americanos que ficaram presos na embaixada do Irã marcou para sempre o presidente Jimmy Carter, a forma patética como tudo terminou em Cabul pode marcar de forma indelével o governo de Biden. O apelido dado pelos seus inimigos -- Joe Dorminhoco -- tem sido citado aos quatro cantos. Para piorar, antes da queda, Biden afirmou que não havia nenhuma chance de uma saída às pressas, como a que ocorreu no Vietnã. Só que a realidade foi exatamente o oposto do que previa Biden. E depois que o fiasco aconteceu, o presidente americano demorou longas horas para se manifestar.
Quem poderia imaginar que, tendo despendido tanto dinheiro -- um trilhão de dólares --, tanta energia e tanto sangue, o aniversário de 20 anos dos atentados ao World Trade Center e ao Pentágono será marcado justamente pelo vexame de devolver aos aliados dos terroristas o comando do Afeganistão? Certamente esse 11 de setembro terá um gosto bem amargo para os americanos.