Editorial
A pandemia e o papel da China
Imagens de cerimônia com 11 mil estudantes aglomerados em Wuhan reacenderam discussões sobre as teorias da origem do novo coronavírus
Uma notícia vinda do outro lado do mundo chamou a atenção e causou discussões nas redes sociais. Mais de 11 mil estudantes, quase todos chineses, participaram, no domingo, de uma grande cerimônia de formatura coletiva na cidade de Wuhan, na China. As imagens da celebração mostram que praticamente nenhum participante usava máscara de proteção sanitária.
A situação é no mínimo curiosa. Enquanto a maior parte do planeta ainda luta e sofre no enfrentamento da pandemia, a cidade que foi o epicentro real do novo coronavírus já voltou totalmente à normalidade. Isso acontece 14 meses após a suspensão das restrições na metrópole asiática. Os 11 milhões de habitantes de Wuhan, na província de Hubei, foram colocados sob quarentena em 23 de janeiro de 2020, evidenciando a gravidade do vírus que depois se propagou pelo mundo. A cidade ficou 76 dias sob confinamento e só começou a retomar o dia a dia, de maneira progressiva, a partir de abril de 2020. O mesmo ocorreu depois com outras regiões do país, onde o contágio foi controlado. Wuhan tem uma população similar à da cidade de São Paulo, e possui mais de 100 universidades.
Apesar de ser o berço do vírus, o país registrou pouco mais de 90 mil casos de Covid-19 e 4.636 mortes desde o início de 2020 -- a maioria em Wuhan. Isso segundo os números oficiais do governo chinês. É bom lembrar que a China possui um regime fechado, de pouca ou nenhuma transparência democrática. Portanto, apesar de serem oficiais, tais dados são bastante duvidosos e improváveis.
As imagens do amontoado de gente na cerimônia escolar em Wuhan inundaram os noticiários e reacenderam a discussão sobre o papel da China em relação à pandemia. Aqui no Brasil, como já virou hábito, a questão também foi polarizada.
Os defensores do gigante asiático afirmam que a China chegou a essa situação de controle da pandemia pois adotou medidas restritivas radicais, como lockdowns, controle de tráfego de pessoas, rastreamento de infectados e vacinação em massa de sua enorme população. Independentemente de pandemia, é fato que a China investe pesado em educação, pesquisa, desenvolvimento, ciência e inovação. O país mudou sua matriz produtiva, apostando em indústrias diversificadas e modernas, colocando-se como centro tecnológico para o mundo. O resultado é que em pouco mais de 20 anos a China se tornou a segunda maior economia do mundo, atrás somente dos Estados Unidos -- e no encalço dos americanos. A reboque dessa versão econômica da “revolução chinesa”, milhões de chineses saíram da linha da pobreza.
Mas nem tudo são flores, longe disso. No caso da pandemia, as imagens da aglomeração em Wuhan alimentaram as teorias da conspiração e as suspeitas sobre o início da pandemia. Afinal, justamente ali perto da festa, está localizado o Instituto de Virologia de Wuhan, também um epicentro, só que da discussão sobre a origem do novo coronavírus.
As desconfianças têm razão de existir. Apesar de uma missão da Organização Mundial da Saúde ter, inicialmente, indicado que a origem do Covid-19 teria sido animal, novas investigações apontam que a delegação da OMS, na verdade, não teve acesso irrestrito aos laboratórios e estudos realizados no instituto. Membros do governo do presidente americano Joe Biden, inclusive, contestam o relatório inicial da OMS. Novos laudos mostram que uma falha de manipulação de laboratório não está descartada. Essa teoria, inclusive, ganhou força no meio científico.
Enfim, independentemente da origem do vírus e sem entrar em teorias da conspiração, o fato é que, economicamente, a pandemia acabou sendo favorável ao governo chinês -- seja na venda mundo afora de seu gigantesco cardápio de produtos, muitos deles relacionados com a pandemia, seja na dependência de muitos países, seja no PIB, que cresceu enquanto todos os outros países naufragavam.
Acidental, proposital ou simplesmente um vírus de origem animal, é no mínimo razoável levantar a discussão de até onde vai a culpa da China pela pandemia que já tirou milhões de vidas. Afinal, bem ou mal, a pandemia eclodiu na China. Nesse sentido eles poderiam -- ou deveriam --, no mínimo, oferecer ajuda sanitária gratuita a muita gente, como vacinas, insumos, EPIs etc, sobretudo aos países mais afetados e necessitados. Seria no mínimo um gesto de grandeza.