Editorial
A corrida por atestados
Nas últimas semanas, o Brasil passou a observar novas estratégias para tentar burlar os caminhos normais da imunização
Quando a vacinação contra o coronavírus teve início no País, dezenas -- se bobear, centenas -- de casos de fura-filas ou tentativas de driblar a fila da vacinação foram relatados Brasil afora.
A forte reação da opinião pública, a exposição das malandragens nas redes sociais e os riscos de eventuais punições parecia ter aquietado o espírito de Lei de Gérson de parte dos brasileiros, aquela turma que sempre quer levar vantagem em tudo -- são os mesmos que andam no acostamento se uma estrada está congestionada, que acham que achado não é roubado etc.
Pois bem, após todos esses episódios, o País volta a ter de conviver com novas situações desse tipo, só que agora de formas mais elaboradas. É como uma sequência de um filme. Tivemos o “Fura-fila, o início”. Agora temos a continuação, uma espécie de “Fura-fila, a evolução”.
Diante da cara de pau dos personagens, é uma série que promete novos capítulos até o fim da pandemia.
Nas últimas semanas, o Brasil passou a observar novas estratégias para tentar burlar os caminhos normais da imunização.
Em Sorocaba, por exemplo, dezenas de homens se apresentaram nos postos de vacinação após fazerem agendamento que se destinava às grávidas e puérperas -- mulheres que deram à luz há pouco tempo.
Ao menos 45 moradores passaram por essa situação e, ao chegarem ao local da vacinação, foram orientados e voltaram para casa sem as doses, claro.
Segundo a Prefeitura de Sorocaba, foi apenas um mal-entendido em relação ao cadastramento e não houve necessidade de nenhuma investigação sobre os casos.
A mesma situação -- homens se cadastrando como grávidas -- aconteceu em diversos municípios espalhados pelo Brasil.
Evidentemente que a imensa maioria apenas se confundiu na hora do cadastramento. Mas certamente entre eles deve haver alguém que tentou burlar o processo, apostando em alguma burocracia. Tipo, vai que usam apenas o cadastro e não conferem? O famoso “vai que cola”.
Enfim, os casos dos “grávidos” pode ser erro cadastral, mas agora surgiu outra situação e essa é absolutamente indefensável.
Desde que Estados e municípios brasileiros deram início à imunização de pessoas com comorbidades, tem havido uma corrida por atestados. Mesmo porque diagnósticos mais comuns, como hipertensão ou diabetes, dão direito a esse tipo de vacinação.
Na condição de anonimato, muitos médicos relatam pedidos de amigos e parentes por atestados falsos para poderem se vacinar.
Nesses casos novamente temos o aparecimento do pior lado de boa parte dos brasileiros, de querer burlar as leis, de querer aplicar o famoso “jeitinho”. O que, na verdade, é cometer uma fraude. Buscam fraudar um documento para obter vantagens.
Infelizmente, pedir um atestado falso para furar a fila da vacinação é uma extensão de uma prática comum no País, na qual muitas pessoas pedem e se utilizam de atestados médicos sem efetivamente passarem por uma consulta ou avaliação. Seja para abonar falta no trabalho, seja para conseguir uma medicação.
Na Praça da Sé, no centro da capital paulista, por exemplo, é possível comprar, por R$ 220, um “kit completo” para furar a fila, com documentos que atestem comorbidades. O kit inclui atestado médico com a suposta doença e o receituário de um medicamento.
Já no Rio de Janeiro, um médico e o dono de uma clínica foram presos em flagrante ontem, suspeitos de venderem atestados falsos por R$ 20, nos quais diziam que o paciente possuía comorbidade incluída no rol elencado pelo Ministério da Saúde para a vacinação. Ambos podem pegar até cinco anos de prisão, de acordo com a polícia.
Diante dessas situações, duas constatações. A tristeza de ver esse caráter de alguns brasileiros de querer levar vantagem. Para piorar, no meio de uma crise sanitária de terríveis consequências.
E também o alerta de que algo precisa ser feito em termos de checagem de documentação na hora da vacinação. Depender somente da índole e boa fé das pessoas não dá muito certo por essas bandas.