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Um senhor gato

06 de Março de 2019 às 00:01

Neusa Gatto

Com licença? Como gato educado e elegante que sou, não entro, assim, sem me apresentar. Tenho classe. Sou daqueles gatos amarelos, os de cor laranja, como dizem. E, modéstia à parte, apesar de não ter raça definida, sou bonito. Dizem até que minha cor é um tanto rara. Não tenho ideia do que seja rara. Mas, acredito ser um elogio porque, quando me veem, me admiram.

E não pensem que sou exibido, que me acho melhor que a minha turma da vila. Não. Tenho consciência de classe. Já fui street cat. Então sei como é. Vida dura. Correr da chuva, de baciada de água e até de pontapé de gente ignorante aqui do bairro. E a dieta então? Ratos, raros passarinhos, resto meio azedo de macarronada de domingo.

Mas, dessa vida, cansei! Um dia, olhando pro céu com estes meus lindos olhos verdes, pensei: -- gato, até quando vai ser assim? Dia vai, dia vem e você ainda sem eira nem beira? Sem uma almofada pra chamar de sua! Sem um humano pra ser seu servo!

Então, deixei a farra com a galera à noite, e sai a pesquisar um lugar só pra mim. Espiei tudo. Me equilibrei em muros, subi em árvores, me esgueirei pelas paredes. Descartei aqueles com cães neuróticos, periquitos espalhafatosos e, principalmente, gente esquisita, que olha torto pra gato. Também considerei o espaço. Havia de ser um ambiente com cantos pra cochilos, esconderijos, e, principalmente escapes para fugas estratégicas. É... não se pode descuidar das rotas de saída...

E, assim em meio a tantas casas áridas, sem verde, jardins, embrulhadas em ladrilhos, cerâmicas, cimento, uma era diferente. Havia quintal com árvores, cantos aconchegantes e até uma varanda com um treco pendurado que depois vim a saber se chamar rede. E, nada de bicharada neurótica. Reinaria absoluto. Bastava apenas conhecer a índole do morador. Vai que fosse um destrambelhado. Assim, entre uma visita e outra, analisava de longe as suas atitudes. Seu “psicológico”, vamos dizer assim. Até que, em um desses dias, folguei. Reconheço. E ele me pegou fuçando o armário da cozinha. Que susto. Dele e meu. Saí de pinote. Não, sem antes dar uma boa olhada no cidadão. Cinquentão, cabeludo, grisalho, com jeito de roqueiro. Um tipo assim, meio hippie, que vivia ouvindo sons altos pela casa com cara de quem está em outro mundo, se é que me entendem...

E, pra minha surpresa não houve violência. Pasmem, até sorriu. Então, pensei: esse é o cara. Certo que é dado a umas biritas. Dança e canta sozinho. Recebe uns amigos malucos, que, quando folgam comigo levam umas mordidas e arranhadas, mas me pareceu ser um servo ideal. Dirão: lá vem ele com a história de servo. Não, não, por favor, não me levem a mal. Como gato, sei que vim ao mundo para ser servido. Embora ele não saiba, claro. Coisas “psicofelinas”.

Verdade que demorei um pouco pra entender as esquisitices do cabeludo grisalho. Dava pra sair à noite pelo quintal balbuciando palavras tipo: Tissim, Bicio, Cissiu, Cicinho... Olhava pros lados. Procurava alguma coisa. Ninguém aparecia. Ficava ali parado, como que esperando. Depois de um tempo largava la uma comida e saia. Eu, de longe, só de olho. Louco de fome, mas precavido. Não corria pra botar a cara na gororoba. Não senhor. Dava um tempo, olhava de lado, checava bem o ambiente e só então me atirava. Vai que ele voltasse!

E todo dia isso. E eu a observar. Até que, inteligente que sou, comecei a entender. Se toda vez que ele chamava, punha comida e nada de ninguém desfrutar, só eu, e sem ele reclamar, era sinal que aquilo era pra mim. Ele começava a me servir, de fato. E, daí pra frente era só eu ouvir: Cissim, Cicinho...que eu já corria até ele. Entendi, então, que esse deveria ser meu nome: Cissinho ou Cicim. Não, não me incomodo com a ortografia. Atendo pelos dois, sem problema.

E então, com identidade e autoestima subindo, resolvi explorar um pouco mais a minha nova casa. E, aí não tive dificuldade. Com janelas e portas sempre abertas o convite tava feito. Era o hippie sair prum lado pra eu entrar pelo outro, ziguezagueando pelos cômodos. Tudo me interessou. E, muito especialmente um que considerei vip: o quarto. Cama, almofadas, travesseiros, cobertores. Experimentei tudo. Afofei o que pude. Ronronei até não poder mais, arranhei algumas coisas e, claro, deixei um xixizinho aqui e ali. Não, não, não se trata de falta de higiene da minha pessoa. Aliás, sou muito cuidadoso com minha toalete. É que esse é um ritual felino que não resisto. Quando dou conta, já fiz. Já marquei o território. É meu escudo odorífico pra que nenhum irmão mal-encarado tome meu lugar. Eles que achem os deles.

Não queria outra vida, mas, confesso, extrapolei e mereci uma bronca. Me deu tantas vontades de marcar meu território ali que, o odor, maravilhoso pra mim, deixou o ripongo doido da vida. Falou, gesticulou, botou o dedo quase no meu nariz. Nem precisava tanto escândalo. Se a ordem era não passar da varanda, pouco me incomodava. Dei de ombros e sai. O que ele não sabia e nem sabe até hoje é que ali é meu lugar preferido da casa. Na rede, quantos cochilos...

E, assim, aqui tá tudo às claras. Embora, furtivamente ainda bisbilhote no seu quarto, hoje não marco mais o lugar. Mesmo com tudo que foi limpo, o que sobrou já basta pra indicar pros enxeridos, que o lugar é meu.

Quanto a rede o uso não tem sido lá muito democrático. Consciencioso como sou, entendo. Se ele chega, dou uma boa espreguiçada e saio pra ele deitar. Agora, devo dizer que, quando é o contrário, e é ele que tá na rede, ele não sai. Sei que sou rigoroso e não gosto de muita intimidade, mas, neste caso, tenho me permitido acompanhar o meu servo. Assim, se ele ta lá num cochilo, num pulo vou pro colo dele. Me aconchego entre suas pernas e ficamos os dois a roncar.

Neusa Gatto é jornalista, produtora de TV e conteúdo.