Um problema como Maria
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Leandro Karnal
Há uma cena em A Noviça Rebelde (The Sound of Music, Robert Wise, 1965) que sempre me pareceu um debate sobre educação. A letra da música pergunta como se resolve um problema como Maria (How do you solve a problem like Maria? Richard Rodgers, Oscar Hammerstein II, Irwin Kostal). A reverenda madre Virgília é interpretada pela atriz Peggy Wood (1892-1978) que, com voz firme e afinada, dirige um debate que parece um conselho de classe. As freiras se dividem: Maria é indisciplinada e incapaz de seguir os horários (exceto para as refeições). Ela canta e assovia no espaço sagrado do claustro e sobe em árvores. Talvez até, insinuação terrível, tenha cachos sob o véu! Maria parece dividir as religiosas: sincera, alegre, impetuosa, uma palhaça ou, diz a mais crítica, um demônio!
A figura da abadessa é muito humana e realista. Um pouco adiante, ela proporá uma experiência de trabalho externo como babá que mudaria a vida da candidata. Para animá-la, incentiva a que Maria escale cada montanha (climb every mountain), que tente cada hipótese, que ouse! A meta seria encontrar seu sonho (till you find your dream).
Volto à cena anterior. Maria está sendo analisada. Diante de tantas opiniões, a superiora diz que é difícil fixar a nuvem ou agarrar o luar com a mão. No fundo, defende, ela é apenas uma menina. O argumento coletivo é muito interessante: a controvertida personagem de Julie Andrews não seria um ganho para a abadia (Maria’s not an asset to the abbey). Asset é uma palavra que, aqui, pode ser traduzida por trunfo, bem valioso, um recurso humano que pudesse trazer benefícios ao grupo. Virou termo usado em treinamentos empresariais. O Dicionário de Cambridge dá uma frase de exemplo para alguém que poderá ser muito bom para a equipe: He’ll be a great asset to the team.
O parágrafo anterior indica o defeito do julgamento sobre todo funcionário ou aluno. Pensamos na abadia, na empresa, na escola, como deve ser, já que servimos ou pertencemos todos a alguma forma de abadia. A pessoa/colaborador/aluno deixa de existir como ser autônomo e único e passa a ser vista(o) como engrenagem útil.
Sendo professor, sei que tenho de pensar no todo. O grupo deve ser preservado de alguém que o ataque ou atrase. Eu devo defender a instituição e a maioria. Sou membro ou dirigente da “abadia”.
A liberdade de um jamais pode ser um obstáculo ao objetivo de todos. Porém... além dos muros da abadia, existe o mundo. Maria escalaria outras montanhas e viraria uma babá revolucionária, que faria um enorme bem aos filhos do austero Von Trapp e ainda descobriria o amor e a resistência aos horrores do nazismo. A “noviça” era rebelde em um ambiente onde a rebeldia era um obstáculo e foi transformadora em outro meio no qual a não conformidade com regras estúpidas provou ser uma libertação. A abadessa era uma líder e não apenas uma autoridade e conseguiu reunir duas habilidades: defender os interesses da abadia e estimular Maria a encontrar o caminho para si. É um gesto de profundo humanismo e uma genuína lição de vida.
O “problema de Maria” é o problema humano da diversidade. Muitos de nós ganhamos se conseguimos superar egoísmos e idiossincrasias e pensando em finalidades mais elevadas do que apenas em nosso prazer. Em qual momento a regra me ajuda a melhorar e quando ela vira calabouço frio que só define uma tradição? Exatamente porque não existe resposta que a administração de humanos (na sala de aula ou na empresa) é uma tarefa árdua.
A abadessa (ou...CEO do convento) entendeu que o sonho dela era estar naqueles muros e servir a sua fé e sua decisão. Entendeu também que havia a hipótese que Maria deveria tentar algo distinto para ser feliz. Ouviu as colaboradoras livremente, expressou sua discordância sem raiva, refletiu e tomou a decisão. Madre Virgília não contabilizou decisões optando pela que fosse mais expressiva do ponto de vista numérico. Analisou a fundo e percebeu que cada freira ali (a superiora das postulantes, a mestra das noviças, etc.) fazia julgamentos a partir de si sobre Maria. Viu que se misturavam dores pessoais diante da felicidade da jovem. Quando todas adjetivavam, ela apenas concluiu que Maria era, afinal, uma menina.
O “problema de Maria” é o problema do humano: somos irrepetíveis e complexos. Fazer uma pessoa abandonar alguma opinião/comportamento pode ser libertador para ela, assim como pode destruir todo o impulso transformador que cada uma carrega. Deixá-la seguir seu caminho na escalada não significa que vá abandonar o esforço, apenas que se decidiu por trilha autônoma. Einstein não poderia ter ficado a vida inteira no escritório de patentes em Berna, sua montanha era mais alta. O Reed College do Oregon talvez não fosse o ambiente mais desafiador para Steve Jobs, apesar da excelente estrutura da casa. Isso não é a defesa do “saia por aí sozinho”. A abadessa era brilhante e feliz e estava perfeitamente enquadrada no recolhimento da vida religiosa.
Lidar com gente é complicado. Se fosse diferente, todo mundo daria aulas brilhantes, dirigiria empresas felizes e geraria filhos com harmonia absoluta. Pessoas desafiam normas e não se enquadram em algoritmos. Porém, nunca nos esqueçamos: o filme, em português, é “a noviça rebelde”, nunca a “noviça enquadrada no sistema e adaptada às metas”. Rebeldia fez a Bíblia ultrapassar o capítulo dois do Gênesis e Hollywood superar os primeiros cinco minutos da película. Você detesta gente? Não tiro sua razão. Apenas um conselho, nunca administre negócios, nunca dê aulas e jamais se reproduza. Seja feliz por esta semana e para sempre.
Leandro Karnal é historiador e escreve para a Agência Estado.