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Um modelo para as damas

02 de Maio de 2019 às 09:08

Leandro Karnal

Ilustração: Vanessa Tenor

A presidência de uma república, como concebemos hoje, foi reinventada no fim do século 18. Na esteira da revolução americana, o novo país adotou o modelo antes restrito a poucas cidades italianas e áreas menores. Era um fato notável e implicava adaptações. Uma delas foi como tratar o seu líder, o chefe do Executivo. Para evitar associação com monarquia ou concentração de poderes, usou-se, depois de muito debate, a fórmula Mr. President, Senhor Presidente. Era respeitoso, mas prosaico, lembrando a quem estivesse no cargo sua origem como cidadão comum.

Das muitas coisas que foram levantadas naquele debate, não passou pela cabeça dos pais-fundadores a ideia de mulheres na presidência da República. Embora Abigail Adams tivesse escrito ao marido: remember the ladies, na hora de fazer leis inclusivas no novo país, ninguém sonhava com cidadania plena para elas, quanto mais colocá-las no topo do poder político. De fato, até hoje, os EUA nunca tiveram uma presidente.

Foi apenas no século 19 que movimentos sufragistas espocaram. Obtiveram ainda mais força no século 20. Mulheres ganharam direitos políticos, mas ainda nem sequer eram cogitadas à presidência pela maioria votante. A primeira mulher eleita para cargo executivo máximo foi na República de Tuva, em 1940 (Khertek Anchimaa-Toka). No nosso continente, tivemos mulheres presidentes na Argentina (duas vezes), Nicarágua, Panamá, Guiana, Costa Rica, Chile e Brasil. Houve interinas na Bolívia, Haiti e Equador. No cargo de primeira-ministra, alguns exemplos notáveis: Índia, Alemanha, Israel e, recentemente, Nova Zelândia

Rainhas não contam, pois não foram eleitas e fogem ao nosso levantamento parcial. Ainda assim, soberanas foram notáveis na Rússia, Havaí e Inglaterra. Mesmo que a política não seja mais um lugar exclusivamente masculino, está bem longe de ser um campo do feminino. O debate que houve no Brasil recente sobre o gênero da palavra presidente mostra que o tema do empoderamento feminino é pouco usual para muitos.

Em um universo dominado por cargos masculinos, surge a figura republicana mais comum: a primeira-dama. É uma quase “instituição curiosa”, pois seu pressuposto é o de uma mulher que não tenha carreira, apenas acompanhe o marido em eventos públicos. Espera-se que seja simpática, fale pouco, corte fitas e dê apoio ao eleito. Deve gerenciar instituições beneméritas, promover atividades caritativas e, acima de tudo, claro, ser e parecer honesta, como convém à mulher de César.

Os norte-americanos amaram Eleanor Roosevelt, Jackie Kennedy (enquanto foi Kennedy), Barbara Bush e Michelle Obama. Nem sempre tiveram relação simpática com Hillary Clinton. No mundo, há as internacionalmente atacadas: Imelda Marcos e Elena Ceausescu.

No Brasil, o título foi inaugurado pela esposa do Marechal Deodoro, Mariana Cecília de Sousa Meirelles da Fonseca. O mundo elitizado da capital da República se encantou com o casamento de Nair de Tefé com o presidente Hermes.

Ela era uma mulher talentosa, pioneira na arte da caricatura e pianista que escandalizava os palacianos tocando maxixe. A esposa de Getúlio, Dona Darcy, criou a Legião Brasileira de Assistência (LBA), que, no começo, era voltada aos familiares dos nossos expedicionários. Nos “anos dourados”, dona Sara, esposa de JK, foi muito louvada. Os atritos do casal nunca chegaram à grande imprensa.

A mulher de Jango, Maria Teresa, era destacada pela beleza. A imagem de Costa e Silva no hospital com sua esposa ao lado (a curitibana Iolanda) comoveu muita gente. Era um modelo esperado de devoção matrimonial. Ruth Vilaça Correia Leite Cardoso (esposa de FHC, a única que de fato conheci, pois foi minha professora) era uma intelectual respeitada e detestava o título de primeira-dama. Talvez seja a preferida da classe média brasileira. Dona Marisa Letícia pouco falou em oito anos. Sua sucessora foi lembrada pela tatuagem com o nome do marido na nuca. A atual primeira-dama, Michelle Bolsonaro, causou excelente impressão inicial com seu discurso em Libras.

Houve esposas que “quase” alcançaram o título. Alice era mulher do presidente cuja posse o movimento de 1930 impediu: Júlio Prestes. Em 1969, Mariquita Aleixo seria primeira-dama, porém, os militares acharam melhor que o vice não seguisse a Constituição. Importante trazer à memória o nome de Risoleta Neves, mulher de grande equilíbrio em meio a crises. O tamanho da crônica não permite citar todas.

Tudo o que eu falei antes evidencia um mundo ainda precisando repensar valores. As mulheres dos presidentes são lembradas, dominantemente, por serem bonitas ou não, simpáticas ou não, tatuadas ou não e bem menos se foram pessoas autônomas. Ao lado dos fatos isolados que alcançaram a mídia, existem imensos silêncios sobre o feminino e o poder. A própria memória de tudo já mostra opções de gênero a serem repensadas. Independente da beleza, simpatia ou discrição: ainda existe um mundo para uma primeira-dama? A opção política de um marido deve envolver a esposa necessariamente? Seriam funções cerimoniais inócuas ou seria o símbolo de perpetuação de um domínio já insustentável na prática? Uma primeira-dama seria um mau exemplo para as meninas que pensam em carreira e autonomia ou algo que devemos preservar? A própria palavra “dama” implica o controle aveludado do cavalheirismo? Por fim, lembremos de Gauthier Destenay, casado com o primeiro-ministro de Luxemburgo, Xavier Bettel, que posou para fotos e participou de atividades ao lado de outras primeiras-damas em reuniões atendidas por seu marido. São boas questões para o debate. É preciso ter esperança.

*Leandro Karnal é articulista da Agência Estado e escreve para o Cruzeiro do Sul.