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Trabalhar como camelo morrer como humano

18 de Janeiro de 2020 às 00:01

Em cinco dias 10 mil camelos serão mortos por franco-atiradores na Austrália (Dos jornais). Crédito da foto: Faisal Al-Nasser / AFP

 

Edgard Steffen

Más notícias é que não faltam na Austrália. Não bastasse a seca, incêndios -- diga-se de passagem não levantaram protestos dos ecologistas militantes -- devastam parte daquele país. O fogo destrói casas e fazendas. Matam animais domésticos e selvagens. Ameaçam de extinção espécies como a dos coalas, porque estes simpáticos “ursinhos” (na verdade, marsupiais) refugiam-se no topo das árvores. Melhor sorte têm os cangurus que, aos pulos fogem da área incendiada. Sobre eles, helicópteros despejam chuva de batata-doce, cenoura e legumes para que não morram de fome. O homem nem sempre consegue fugir das armadilhas do fogaréu.

Não conheço o país, descrevem-no muito parecido com o Brasil. Conjecturo que tanto os fazendeiros que perderam a vida, como os que se salvaram, tenham trabalhado feito camelos. Os sobreviventes terão que reformular seus projetos e acamelar feito mouros para reconstruir as herdades. Envelhecidos, sem o vigor da juventude, mais árdua será a luta e a labuta.

Leio que franco-atiradores, em helicópteros, deverão matar milhares de camelos, porque estes animais disputam a escassa água com as espécies nativas e põe em perigo tantos as fazendas dos brancos como os abrigos dos aborígenes.

Pesquiso na enciclopédia eletrônica (Wikipedia). Encontro dados interessantes. Nós chamamos camelos animais mamíferos ungulados do gênero Camelus com duas espécies, ambas arroladas no Systemae Naturae 1758 de Carolus Von Lymnaeus: Camelus dromedarius (com uma só corcova) e Camelus bactrianus (com duas corcovas). O da Austrália é o dromedário. Muito resistentes ao calor e pouco exigentes em alimentos, comem até galhos secos de palmeira ou palha da cobertura de habitações. Bebem grande quantidade de água e a reservam até nas hemáceas; estas dobram de tamanho. Também a gordura, rins e membranas nasais evitam a perda de líquidos. A urina é muito concentrada, quase gelatinosa. As fezes extremamente secas servem para fazer fogo, usado no preparo de alimentos e aquecimento dos abrigos nas frias noites do deserto.

Do século XIX até a primeira metade do XX aquele país usou dromedários para transporte de bens e construção das ferrovias. Importaram 20.000 animais da Índia. Os caminhos de ferro tornaram desnecessárias as caravanas de carga e os animais foram negligenciados. Muitos fugiram e voltaram ao estado selvagem. Contam hoje, mais de 1 milhão e o crescimento populacional é de 8% ao ano. Numa região com escassez de água e vegetação eles inviabilizam a ovinocultura.

Velha piada costuma definir camelo: cavalo feito por um trabalho de equipe. Maldade! Mas que é feio, é. Se um guerreiro a cavalo vale por cinco apeados, o guerreiro montado no camelo vale muito mais. Não só pela resistência da montaria às condições inóspitas do deserto, também porque os cavalos se assustam com aquele bicho mais alto que eles. Equinos a imponente galope movimentam-se rápido. Rápido cansam. Camelos conseguem correr por mais tempo, ou sustentar trote contínuo por longas jornadas. Árabes, romanos e até ingleses tiveram experiências bélicas usando cameleiros treinados.

Outros animais trazidos pelos europeus como pets (coelhos e gatos), prática de esporte “nobre” (raposas vermelhas), combate a insetos (rãs-touro) -- só para citar os mais conhecidos -- alongaram-se, tornaram-se ferais e viraram praga. Foram envenenados ou abatido a tiros, para controle populacional.

Parafraseio trova popular. Até para os bichos há diferença de sorte, sobre uns chove pão para a vida, sobre outros balas para a morte.

Sorocaba, 15 de janeiro de 2020

Edgard Steffen é médico pediatra e escritor. E-mail: [email protected]