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Sorte é tudo!

26 de Abril de 2020 às 00:01

Sorte é tudo! Crédito da foto: Divulgação

Leandro Karnal

Sofia ganhou da avó um cavalo-marinho de cristal. Peça antiga, austríaca talvez, de beleza delicada. O presente veio com uma frase forte: “Enquanto você estiver com ele, tudo dará certo”.

Não sabemos se foi o impacto daquele momento, talvez o caráter crédulo de uma criança de sete anos ou o afeto pela velha senhora que se transferia para a peça: Sofia nunca mais se separou do mimo. Guardado em estojo de madeira forrado com veludo, o bichinho era retirado em todas as ocasiões de prova.

Os professores já sabiam que a pequena só responderia a quaisquer perguntas nas avaliações escolares se tivesse, firme ao seu lado, o cavalo-marinho amado. A profecia da anciã deu certo: Sofia era aluna brilhante e suas notas sempre foram as melhores.

Já adolescente, estava passeando com a família quando receberam a notícia da proximidade da morte de dona Filomena, a doce avó. Foram direto ao hospital e lá encontraram a senhora a minutos do fim. Houve tempo curto para comovida despedida. No velório, inconsolável, Sofia dizia para todos: ‘Eu não estava com o cavalo-marinho. Se eu tivesse levado, ela não teria morrido‘. A avó falecera e a certeza da menina cresceu. Nada de ruim teria acontecido se a pequena figura estivesse junto.

A peça acompanhou a adolescente à Disney e sobreviveu a todas as montanhas-russas. O objeto disciplinou Sofia: ela o guardava no estojo sempre, nunca o perdia e tomava todos os cuidados para manter a integridade física do seu vetor de bons fluidos. O avião trepidava? Ela segurava o pequeno cristal e a turbulência cessava. O restaurante da beira da estrada era duvidoso quanto ao item higiene? A comensal fazia refeição despreocupada, nunca haveria intoxicação se o cristalino cavalo-marinho estivesse por perto. A fama da fé de Sofia cresceu e os fatos eram tão eloquentes que mais de uma amiga solicitou a posse do estojo com a figura que os antigos chamariam de apotropaica, aquele objeto que protege dos malefícios. Podiam pedir; imploravam, até. Duas chegaram a romper a amizade com a dona da peça. Ela preferia o isolamento a ter de emprestar seu precioso talismã.

Após os estudos brilhantes e uma carreira jurídica assegurada, Sofia prestou concurso para a magistratura. Pobres dos outros candidatos: tinham se esforçado como a jovem Sofia fizera, todavia não estavam amparados pela aura luminosa da sorte do cavalo-marinho. Juíza federal aos 26 anos e próxima de se casar: que outro caminho poderia surgir a não ser o da felicidade?

A data marcada foi o final de maio, mês belo e pouco criativo para núpcias. A originalidade estava nas instruções para o vestido da noiva. Costurado dentro de um bolso interno, protegido por camadas de seda francesa para atenuar impactos, estaria o cavalo-marinho de cristal acompanhando a noiva quando entrasse, solene, na nave da igreja. O amuleto a acompanharia no enlace com Leonardo, jovem e promissor colega de toga.

Talvez fosse o zelo da noiva, excessivo e pouco racional. Ela atenazou a pobre costureira com tantos cuidados que soaram arrogantes e impertinentes à trabalhadora. ‘Cuidado, pegue com jeito, forre com muitos tecidos, é muito importante!‘ e outras repetidas expressões que deixaram a pobre moça com vontade de enfiar a agulha na jovem juíza. Apesar do semblante submisso, a menina do ateliê decidiu se vingar. Dando arremates finais na peça, colocou uma caveira de feições diabólicas no pequeno espaço reservado ao talismã. Era medonha! Envolvida em muito tecido e com peso similar, ninguém poderia dizer que o alvo vestido trazia figura tão terrível no seu interior, como se fosse um cavalo de Troia recheado com inimigo mortal.

Sofia ficou linda e inocente no vestido. A jovem costureira sorria dizendo que ela seria muito feliz. Naquela tarde, terminando sua vingança épica, a menina arremessou o cavalo-marinho ao Rio Tietê. “Que desse sorte ao rio”, falou do alto de um ônibus que atravessava uma ponte estaiada sobre o fétido curso d’água. O cavalo de cristal afundou com um som súbito. Quase ao mesmo tempo da vendetta, a noiva entrou confiante ao som estrondoso da marcha nupcial carregando, sem saber, o símbolo da morte e de feitiçaria vingativa perversa.

A cerimônia comoveu as pedras. O padre fora de uma rara felicidade na exortação aos noivos a partir do hino ao amor de Paulo na epístola aos Coríntios. Os jovens juízes dançaram até o amanhecer: ele, ela e a caveira assustadora junto ao corpo da noiva rodopiante. A festa foi linda e a lua de mel na Provence marcou o auge da felicidade.

Ao retornar, Sofia havia decidido deixar o que ela supunha ainda ser seu precioso bem no vestido. Ele havia emanado tanta felicidade que ela temia uma dessacralização se o retirasse do nicho. O amuleto repousou na veste nupcial por décadas.

Hoje, doutora Sofia é desembargadora respeitada e autora de livros de Direito com fama internacional. Ao fim de uma existência perfeita e coroada de êxitos, os netos enterraram a desembargadora atendendo ao pedido expresso no testamento. Ela deveria baixar à última morada com o estojo onde, envolto em muitas camadas de seda delicadíssima, repousaria o cavalo-marinho. Os herdeiros retiraram o bolso do vestido e colocaram ao lado da avó. Sob um cabelo ainda belo, envolvida em panos, uma caveira sorria aguardando para dialogar com uma futura colega no caixão. Sorte é tudo! Boa semana e muita proteção para todos e todas!

Leandro Karnal é historiador e articulista da Agência Estado.