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Somos todos irmãos

24 de Outubro de 2020 às 00:01

Somos todos irmãos Crédito da foto: Fábio Rogério (8/10/2020)

Edgard Steffen

“A vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida”.

(Vinicius de Moraes in Samba da Bênção, 1962)

Aos 19 de outubro de 1913, nascia no Rio de Janeiro Marcus Vinicius da Cruz e Mello Moraes -- poeta, dramaturgo, jornalista, diplomata, cantor -- talvez o mais popular dos poetas brasileiros. Pena que sua biografia mais notória esteja ligada aos seus nove casamentos “que não foram eternos porque eram chama, mas foram infinitos enquanto duraram” e aos porres homéricos pela ingestão de “cachorro engarrafado”, como ele definiu o uísque apelidando-o melhor amigo do homem. Compôs parceria com 29 músicos.

Rotulado “poeta carioca”, Vinicius ganhou o prêmio IV Centenário de São Paulo (1954), com a peça “Orfeu da Conceição” -- tragédia carioca. Dois anos após, para montagem da versão musical, convidou o jovem maestro Antônio Brasileiro de Almeida Jobim. Este tornar-se-ia responsável pela internacionalização da dupla. Deles “Garota de Ipanema”, segunda música brasileira mais executada em todos os tempos. Perde apenas para a “Aquarela do Brasil” de Ary Barroso. Para Orfeu, compuseram “A Felicidade”, linda melodia emoldurando versos que tratam do sonho popular. Árduo trabalho para o gozo de quatro dias alegres, e vê-los findar-se na quarta feira de cinzas. Alguns versos merecem figurar entre os mais lindos da inculta e bela. A tal felicidade parece “uma gota de orvalho / numa pétala de flor. / Brilha tranquila, / depois de leve oscila /e cai como uma lágrima de amor”.

Levada para o cinema francês (1957 - 1958), dirigida por Marcel Camus, a tragédia carioca -- renomeada “Orfeu do Carnaval” -- faturou Palma de Ouro no festival de Cannes e Oscar de melhor filme estrangeiro em 1959. A música tema “Manhã de Carnaval”, foi interpretada por Agostinho dos Santos, cantor que não aparece nos créditos. Curiosidades: “Orfeu do Carnaval” era o filme predileto da mãe de Barak Obama. Agostinho dos Santos, corintiano roxo (vi-o várias vezes no Humberto Reale), faleceu no acidente do voo Varig-820 no aeroporto de Orly.

Parece que estrangeiros não gostam muito de colocar nossos patrícios na ficha técnica dos filmes. No premiado e belo “Un homme et une femme”, 1967, -- vencedor da Palma de Ouro (Cannes), Globo de Ouro (USA) e dois óscares (melhor filme estrangeiro e melhor roteiro adaptado) -- o diretor Claude Lelouch incluiu o “Samba da Bênção” na trilha sonora, sem citar nem a música nem os autores. Vinicius e seu parceiro Baden Powell recorreram à Justiça para receber os créditos.

Baden, nascido em Varre-sal (RJ), era filho da dona de casa Adelina e do sapateiro violinista Lilo de Aquino. Escoteiro, Lilo deu ao filho nome do criador do movimento. Em 1962, Baden conhece Vinicius de Moraes e inaugura parceria, na arte e no copo. Em 1966, a dupla compõe afro-sambas de grande sucesso. Tiraram a música brasileira dos apartamentos da zona sul e a levaram aos terreiros; trocaram violões em barquinhos & banquinhos por berimbaus e atabaques em marcações rituais afro-brasileiras.

A Encíclica Fratelli Tutti (Todos irmãos) cita “A vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro na vida”, frase do monólogo encaixado no “Samba da Bênção”, espécie de encenação ritual com pedidos de bênçãos aos orixás.

Na mocidade, Vinicius de Moraes, formado no Colégio Santo Inácio, era católico ferrenho. Seu 7º casamento com jovem atriz afro-descendente foi realizado em ritual do candomblé. Relação durou cinco anos. Retornando ao Rio voltou às composições urbanas e pouco interesse à religiosidade.

Baden -- rotulado por Ruy Castro como levemente católico -- doente pelos excessos etílicos, tornou-se evangélico (1990). Retirou todas as saudações afros, substituindo “saravás” por “bênçãos” e não mais as cantou. Faleceu em 2000.

Em poesia não musicada, Vinicius deu moderna contextualização ao Gênesis. “O Dia da Criação” começa com o verso “Porque hoje é sábado, amanhã é domingo...” Os versos seguintes repetem o mantra “Porque hoje é sábado...”.

Por que hoje é sábado, preencho este espaço para lembrar Vinicius de Moraes, nascido num domingo.

Edgard Steffen é escritor e médico pediatra - e-mail: edgard,[email protected]