Sobrevivendo ao Ponha-se na Rua e ao Bota Abaixo
Crédito da foto: Yasuyoshi Chiba / AFP
Edgard Steffen
O samba agoniza mas não morre.
Reinventa-se (à)
Nasceu maldito e cativo.
Cresceu liberto de amarras.
(Lira Neto in Uma história do samba)
O desenvolvimento cultural do Brasil colonial era caranguejeiro -- arranhava praias e mangues. O Rio de Janeiro, exemplo e modelo. O que lá acontecia valia para todo o País. A cidade podia ser linda. Mas era suja e sujeita à febre amarela, varíola, peste bubônica, febre tifoide. Nenhum planejamento urbano. Cresceu ao sabor do improviso.
Na transmigração da corte de D. João VI, muitos prédios e casas recebiam o selo PR, aviso de que deveriam ser desocupados para abrigar os cortesãos do Príncipe Regente. Para os puxa-sacos, honra. Para a maioria dos desalojados, revolta. Para estes, PR queria dizer “ponham-se na rua!” Os pobres -- escravos libertos em sua maioria -- nada a ganhar ou perder. Precárias habitações não interessavam à Corte. Foram amontoando-se perto do porto e da enseada do Valongo, vizinho ao mercado de escravos. Anos depois, gente humilde invadiu prédios esvaziados com o retorno da Corte a Europa.
Na República, governantes resolveram concretizar o lema positivista “Ordem e Progresso”. O calamitoso saneamento básico era desordem, as constantes epidemias impeditivas ao progresso. Pífio o comércio internacional e dificultosa a exportação do café.
Rodrigues Alves tomou 8 milhões de libras esterlinas em empréstimos bancários e montou um time para o desiderato. Com o general Lauro Müller na Viação e Obras Públicas, o engenheiro Pereira Passos na Prefeitura e o médico Oswaldo Cruz na Saúde promoveu fantástica reurbanização do Rio de Janeiro. Inspirado na modernização de Paris, Pereira Passos aplicou o “bota abaixo”. Na noite de 29 de fevereiro de 1904, sob proteção de militares da infantaria e cavalaria, 150 homens da prefeitura com marretas, alavancas e pés de cabra invadiram a zona central e portuária. Começaram destruir as cabeças-de-porco, barracos e habitações precárias, sob as vistas atônitas de moradores que tentavam salvar trastes e tralhas, em meio aos archotes e picaretas. Derrubaram 1.300 habitações desalojando 14 mil pessoas. No lugar dos cortiços surgiu a avenida Central (hoje Rio Branco), a praça Mauá e o porto, reconstruído, ganhou 56 novos armazéns livres de roedores. O prefeito abriu o túnel do Leme, acesso ao bairro de Copacabana. O Rio ficou mais bonito ainda. Ao custo do sofrimento dos pobres.
Oswaldo Cruz e seu time criaram os mata-mosquitos. Trajando uniformes amarelos exerciam poder discricionário. Invadiam casas e multavam quem não cuidasse de seus quintais. No combate à peste bubônica, a Saúde pagava 300 réis por rato morto. Deu origem a atravessadores que compravam ratos a preço menor e os revendiam aos oficiais da saúde. Expertos empreendedores aprenderam a criar ratazanas e comercializavam a produção. Não consta que alguém tenha enriquecido com essa estranha atividade econômica, mas a peste bubônica foi vencida. A varíola também foi controlada, apesar das batalhas da Revolta da Vacina.
Nos carnavais da época os pobres, organizados em blocos, vingaram-se dançando e cantando versos que ridicularizavam o “Prefeito Bota-Abaixo” e o médico comprador de ratos, matador de mosquitos e tarado por seringas e vacinas.
Num grosseiro resumo das consequências do megassaneamento urbanizador, podemos inferir que a população descendente de escravos refugiou-se nos morros e sopés, levando com ela costumes, religião, danças e músicas. Tiveram que se reinventar. Em janeiro de 1917 surgiria o samba. Mas essa já é outra história.
O Estado Novo getulista incumbiu o maestro Heitor Villas-Lobos de ressuscitar antiga tradição de cordões carnavalescos (1939). Interessava ao regime cultura de brasilidade sem influências estrangeiras. Começaria com o samba do morro e celebrar-se-ia pelos sambas de exaltação .
Tom Jobin resumiu a história: “O morro não tem vez / Mas se derem voz ao morro / Toda cidade vai cantar”.
Finalmente libertado das amarras, canta nas superlotadas ruas. Canta nas arquibancadas os enredos das escolas de samba.
Fontes: Wikipedia
Emp. Folha da Manhã História do Brasil, 2ª ed 1997
Lira Neto Uma história do Samba Vol. I Cia das Letras, 2017
Sorocaba, Carnaval de 2020
Edgard Steffen é médico pediatra e escritor. E-mail: [email protected]