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Sobre leitores e escritores

30 de Março de 2019 às 00:01

Sobre leitores e escritores Crédito da foto: Vanessa Tenor

Edgard Steffen

Meus filhos terão computadores, mas antes terão livros.

Bill Gates

Nasci numa família que gostava de ler. Meus pais estudaram apenas 3 anos, numa escola rural (Friburgo, Campinas), montada e sustentada pelos seus avós europeus para a educação/instrução dos filhos, descendentes e vizinhos. Nos Steffen, mulheres liam apenas a Bíblia e literatura correlata. Minha mãe -- de ascendência sueca -- foi a primeira nora a quebrar a regra. Lia sagrados e profanos.

Ganhei “Os sertões” na adolescência. Demorei saboreá-lo. Tardei vencer minha própria e ignorante rejeição daquilo que me parecia preciosismo e empolamento literário. Ajudou-me saber que meu pai lera Euclides da Cunha. Adulto, não somente o reli como pude comparar sua superioridade em relação ao remake “Guerra do fim do mundo” de Vargas Lhosa.

Meus irmãos e irmãs liam e faziam circular os best-sellers entre amigos e parentes. Menino, eu enxergava o(a) escritor(a) gente especial. Marcaram-me dois que frequentavam nossa casa em Indaiatuba.

Dona Mary -- cujo sobrenome perdi na memória -- alta, elegante, bem-vestida, exibia certo exagero no penteado e na maquiagem. Era mulher de caixeiro-viajante que fazia pião em Indaiatuba. Enquanto o marido visitava a freguesia nas cidades vizinhas, ela permanecia no hotel. Vencia o tédio escrevendo contos e novelas. Fez amizade com minhas irmãs mais velhas e, às vezes, jantava conosco. Após o cafezinho, fãs reunidas na mesa da sala, retirava seus escritos da bolsa e os lia em voz alta. Interpretava-os. Deviam ser histórias tristes. Mais de uma vez lágrimas corriam nas faces daquela pequena plateia. Não sei de suas publicações. Penso que não aconteceu na literatura.

O outro escritor era médico e político. Dos amigos de meu pai, talvez o mais destacado. Quando vinha a Indaiatuba, por mais compromissos tivesse, não deixava de vir à nossa casa. Sempre bem-composto. Terno de fino trato, gravata bem aprumada, sapatos brilhando. Cabelos bem penteados, óculos sem aro, bigode fino e rosto bem barbeado. Rescendia a perfume discreto. Discreta e culta era também sua fala, emoldurada por sóbrios gestos. Um gentleman, como se dizia na época.

Estou me referindo a Luiz Gonzaga Novelli Junior (1906-2000), nascido em Itu. Formado pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro (1931), logo em seguida entrou para a Faculdade de Direito.

Participou da Revolução de 1932. Após a derrota dos paulistas, filiou-se à Federação dos Voluntários, organização que reunia constitucionalistas para manter a luta sem armas. Permaneceu em sua terra natal exercendo a Medicina e lecionando Sociologia ate 1935. No ano seguinte, voltou para o Rio onde passaria a maior parte de sua vida social e política. Exerceu a profissão médica e, depois, a inspetoria do ensino secundário. Em 1941, assumiu o 3º Cartório de Imóveis da então capital da República.

Casou-se com Carmelita Ulhôa Cintra, enteada do Marechal Dutra, condestável do Estado Novo e primeiro Presidente democraticamente eleito no pós-ditadura Vargas. Novelli Jr. elegeu-se deputado federal constituinte (1946), por São Paulo. Anos após, eleito Vice-Governador, foi secretário estadual da Educação e Saúde do Estado de São Paulo (governo Adhemar de Barros). Também ocupou a Secretaria da Justiça no Distrito Federal.

Como escritor, publicou livros didáticos (“Noções de Sociologia”), históricos (“Feijó - Um velho paulista e Padre Bento Dias Pacheco -- um século e uma vida”), religiosos (“Santa Clara”), políticos (“Marechal Eurico Gaspar Dutra -- o dever da verdade”), poéticos (“Da janela de meu sobrado”) e o romance “Não era a Estrada de Damasco”.

Dr. Novelli trouxe para a família esta obra de ficção com a devida dedicatória. Todo mundo leu. Eu, adolescente, inclusive. Assim como esqueci o sobrenome da escritora das tertúlias familiais, não me lembro do enredo e personagens do romance do amigo de nossa família.

Novelli Jr. marcou sua vida com grandes realizações. Muito mais do que possa revelar o empréstimo do nome ao estádio de futebol.

Edgard Steffen é médico pediatra e escreve para o Cruzeiro do Sul - [email protected]