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Sentado com Clarice Lispector e seu cão

11 de Dezembro de 2018 às 09:25

Ilustração: Vanessa Tenor

Fui ao Rio de Janeiro para a posse de Joaquim Falcão na Academia Brasileira de Letras. Primeira posse que assisti na vida. Cheia de rituais. O discurso do novo acadêmico, um jurista, foi pautado e pontuado pela defesa das instituições e da Constituição. Todos sabemos que a ameaça está no ar e é necessária uma articulação de proteção e a ABL faz parte desses mecanismos essenciais à defesa da democracia. Falcão lançou um livro considerado fundamental sobre os mecanismos do STF, sobre os quais, nós leigos, nada sabemos. É o volume O Supremo: Compreenda o poder, as razões e as consequências das decisões da mais alta Corte do Judiciário no Brasil. Sem comparar, longe disso, digo que ele ganhou de mim em extensão de um título. Só que o dele é a realidade e o meu Desta Terra Nada Vai Sobrar... é uma ficção delirante.

Sempre que vou ao Rio, fico em um modesto hotel, na rua Gustavo Sampaio, no Leme. Mês que vem ele fecha, ficará um ano e meio em reformas. Pena, vai me afastar dos domínios de Clarice Lispector. O hotel fica a quadra e meia do número 88, onde Clarice morou no apartamento 701, de três quartos, sala ampla, cozinha, área de serviço. Na sala havia o “canto de trabalho, um sofá, onde ela se sentava com a máquina de escrever no colo. Essas informações me vieram de um livro que todo apaixonado pela escritora deve ter: O Rio de Clarice - Passeio Afetivo pela Cidade, de Teresa Montero. Uma das fotos revela uma Clarice impensável (ah, os mitos). Ela e o filho diante de uma quitanda a escolher bananas. Reles bananas, prosaicas. Preciosidade. Tenho um fetiche, o de livros, artigos ou fotos que mostram lugares, ruas, casas, onde pessoas que admiro -- e até me influenciaram -- moraram.

Na manhã de domingo, saí a pé em busca da estátua de Clarice e seu cão Ulisses, feita por Edgard Duvivier em 2016. Perguntei para uma mulher, ela apontou: é para lá. Caminhei para lá e dei com uma viatura onde dois policiais me ouviram. O que estava no volante perguntou: “É a escritora ucraniana?”. Foi uma surpresa, confirmei. “A que escreveu A história de Marcélia?” Levei um minuto para chegar a Marcélia Cartaxo, que fez o papel de Macabea no filme A Hora da Estrela, último livro de Clarice. Mas o homem sabia alguma coisa e valeu. Ele: “Siga em frente, pegue o Caminho dos Pescadores, a escritora está lá, tome uma água de coco junto dela”.

Dez da manhã, os termômetros marcavam 33 graus. Subi, encontrei Clarice e Ulisses em bronze. O cão a contempla amorosamente. Havia uma série de barracas, pedi um coco gelado, sentei-me. Os cabelos de Clarice estão dourados, pelo tanto de gente que passou a mão em sua cabeça. Também Ulisses recebeu seus afagos, sua cabeça e suas costas brilham ao sol. Fiquei meia hora, olhando para os dois, para o mar e as praias que se estendem pelo Leme, por Copacabana e vão até desaparecer lá na ponta.

Diga o que disserem, sabemos que a cidade está em crise, que quadrilhas de políticos a dilapidaram, traficantes acabaram com tudo, mas nada supera a atmosfera mágica que a cidade tem, o magnetismo e a aparente tranquilidade. Ah, aquelas pequenas ruas sombreadas por árvores imensas, aquele comércio de botequinhos, emporiozinhos de uma porta, casas de sucos, pessoas batendo papo, gritos de um lado da rua para o outro. Mesmo com o clima imaginado que nós, os de fora, tememos, os cariocas estão lá vivendo a vida, o dia a dia. Sei que sou um passageiro, um turista acidental, mas bastam algumas horas para eu relaxar, caminhar pela orla.

Fiquei ali com Clarice no bairro em que ela viveu seus últimos anos, entre 1965 e 1977, quando faleceu aos 57 anos. Cedo demais para morrer. Então tive um insight (porque uso essa palavra?) e ao voltar a São Paulo, corri aos meus cadernos e encontrei uma anotação de uma crônica que reli em 1973, logo que coloquei o ponto final em meu romance Zero. Para quem não sabe, Clarice foi demitida do Jornal do Brasil por não saber escrever crônicas. Esta é de bom tamanho. O que eu procurava veio em um texto intitulado Ao Correr da Máquina.

Clarice: “Meu Deus, como o mundo sempre foi vasto e como eu vou morrer um dia. E até morrer vou viver apenas momentos? Não, dai-me mais do que momentos. Não porque momentos sejam poucos, mas porque momentos raros matam de amor pela raridade. Será que vos amo, momentos? Responde, a vida que me mata aos poucos: eu vos amo, momentos”. Depois, havia outra anotação, uma frase escrita por Clarice: “A máquina escreve em mim”. Acho que é isso Ela disse o que somos, nós escritores: a máquina escreve em nós.

Ignácio de Loyola Brandão é jornalista da Agência Estado e escreve para o Cruzeiro do Sul.

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