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Sarampo, o retorno

24 de Agosto de 2019 às 00:01

Sarampo, o retorno Crédito da foto: Kateryna Kon / Shutterstock

Edgard Steffen

“Mais feia que a mãe do sarampo.”

(Dito popular usado para definir pessoa ou coisa muito feia, situação desagradável, complicada e de muito perigo)

Em 27 de setembro de 2016 o Conselho Diretor da Opas/OMS declarou o Brasil e a América Latina livres do sarampo. O último caso fora registrado no Ceará (2015). A certificação tornava o sarampo a quinta doença prevenível por vacina eliminada nas Américas. As outras foram a varíola (1971), a poliomielite (1994), rubéola e síndrome da rubéola congênita (2015). O sucesso, após quase meio século (1963-2016), foi possível graças à existência de vacina eficaz, imunização em massa e controle efetivo sobre o aparecimento de casos novos. O sistema de vigilância identifica a cepa e rastreia os caminhos percorridos pelo paciente portador do vírus pelo mundo afora. Pela vacinação e isolamento, bloqueia a contaminação dos contatos e impede a proliferação das moléstias contagiosas.

Como “alegria de pobre dura pouco”, nosso refresco também durou pouco. O morbilivírus voltou a ocupar manchetes e noticiários. Nesta semana* a Secretaria Municipal da Saúde de Sorocaba informa ter registrado 14 casos confirmados de sarampo, distribuídos de forma difusa no município. Predomina no sexo masculino (12 casos) e atinge tanto lactentes (4 meses) como idosos (73 anos). Há registros em Itu, Piedade, Itapetininga e Araçariguama.

Vamos lembrar um pouco da história do sarampo. Não se encontram descrições compatíveis com a doença nos escritos de Hipócrates. A primeira descrição, na história da medicina, deve-se ao médico persa Ibn Razi (860-932 dC). Muito provável que tenha aparecido na Índia, de onde atingiu a China e, pela rota da seda, trazido à Europa.

O sarampo tornou-se conhecido a partir da Era Cristã. Associado a outras doenças, foi um dos fatores para o declínio e queda do Império Romano. Presume-se que a peste e a varíola coexistiram com o sarampo, porque os registros históricos são imprecisos na descrição das doenças contagiosas. As mesmas estradas (viae) que permitiram a expansão e manutenção do Império Romano, facilitaram a difusão do cristianismo e dos agentes etiológicos das doenças transmissíveis. A mortandade causada pelas epidemias -- o mesmo aconteceria, séculos depois, com os povos contatados pelas naus do descobrimento e colonização -- baixou significadamente a densidade populacional e a arrecadação de impostos que sustentavam Roma e as legiões. Os generais administradores permitiram a ocupação dos vazios pelos bárbaros. Por via indireta, a decadência levaria ao sistema feudal.

Dezoito séculos se passaram entre as primeiras epidemias (peste Antonina e a descrita por Cipriano, bispo de Cartago)** e o isolamento do vírus (John Enders, Boston, 1954). Para a primeira vacina (Enders, 1963) bastaram somente 9 anos, após o isolamento. O banimento do morbilivírus nas Américas precisou de quase meio século. O retorno, menos de um lustro.

Nas ações de imunização da população, o Brasil foi considerado modelo para o mundo. Esperávamos que o sarampo fizesse companhia definitiva à varíola e à poliomielite. Entre os fatores que contribuíram para sua reintrodução a crise política da Venezuela, o desarme da população (que perdeu o medo porque a doença parecia extinta) e o deletério movimento antivacina e suas absurdas fake news sobre efeitos colaterais.

Neste insensato mundo criaram situação de risco “mais feia que a mãe do sarampo”.

(*) Cruzeiro do Sul Guia Saúde 20/08/2019)

Edgard Steffen é médico pediatra e escritor. E-mail: [email protected]