Retratos da Medicina
Ilustração: Vanessa Tenor
Doutor, salve o meu filho! (Apelo ouvido nos hospitais e prontos-socorros)
m 1891, Sammuel Luke Fields pintou o quadro “O Médico”. Na penumbra de quarto, iluminado por tosco lampião, senhor meio gordo debruça-se sobre catre de criança doente. Veste-se como qualquer cidadão vitoriano. Seu fácies demonstra preocupação. Cofia a barba, como se o gesto apurasse o raciocínio.
No recente suplemento cultural da Revista da Associação Paulista de Medicina, foto ilustra o artigo “O retrato da medicina”(*). No primeiro plano, o cirurgião polonês Zbignew Religa, aparece sentado ao lado da mesa operatória. Nela, paciente ligado a um emaranhado de tubos e aparelhos. Ao fundo, também com o uniforme do centro cirúrgico, jovem médico dorme encostado à parede. A foto foi tirada logo após 23 horas do transplante cardíaco que preservara a vida do paciente. Máscara cirúrgica ainda cobrindo a face e luvas ainda calçadas na habilidosa mão, mostram o atento preparo do Dr. Religa para vencer o cansaço, caso necessário algum procedimento pós-operatório de emergência.
Imagino alguém ligado ao cardiopata dizendo para o médico as palavras que ilustram esta crônica. A frase guarda, em seu âmago, potencial perigo para o profissional de saúde. Por um lado, expressão de grande sofrimento de quem sente iminente perda de um ente querido. Por outro, expressão de quem, subliminarmente, acredita estar na vontade do profissional, a decisão entre salvar ou não salvar o paciente. Absurdo resquício da medicina sacerdotal.
A Medicina adquiriu contornos de arte e ciência quando passou a ser exercida fora dos templos. Os gregos e os árabes separaram-na das divindades. Mesmo assim, Hipócrates foi rotulado descendente da 19ª geração de Esculápio (ou Asclépio, pai de Higéia e Panacécia). O Pai da Medicina feito descendente do próprio Zeus.
Somente é doutor o profissional (advogado, professor, engenheiro, etc) que faz carreira universitária e defende tese perante banca de notáveis. Ciente. Aceito ser chamado doutor como honraria reservada aos médicos. Doctor ou doutor vem de docere, verbo latino que significa ensinar. Essa é missão insuperável no exercício da Medicina, especialmente na Pediatria.
O pediatra é um ensinador de mães. Exulta quando, no longo prazo, consegue ver o sucesso de seus pequenos clientes.
Esta visão é compensatória da lembrança dos que não sobreviveram, ou dos que sucumbiram aos perigos da difícil arte em buscar a felicidade neste mundo das drogas, álcool, violência, etc. E põe etc nisso.
Existem clientes especiais. Este fim de ano foi pródigo em encontrá-los. Por razões afetivas ou por marcar diagnósticos certos na hora exata.
Passados mais de 30 anos, revi a primeira menina que me assustou chamando-me “vovô”; senti-me idoso com menos de 40 anos. Também revi Camila. Veio cumprimentar-me no restaurante. Foi a primeira a me chamar de “você”. Não se referia a mim como “doutor”, “vô” ou “tio”. Aos cinco aninhos, pedia aos pais que a levassem ao Edgard.
Da Universidade de Coimbra (Portugal) L. F., engenheiro em pós-graduação, trouxe-me caneca decorada com desenhos dos edifícios daquela instituição; para minha esposa, um terço de Fátima.
Orgulham-me também os artistas. Mãe de menino dedicado à música, contou-me que Nelsinho é organista maior da principal igreja evangélica na capital. L.E.M.P. é músico de sucesso na FUNDEC. Coloco-o entre os clientes, para os quais fui instrumento da Providência fazendo diagnósticos precisos e procedimentos de urgência.
C.T.F. executivo de renome internacional foi destaque na mídia. Lembro-me do bem nutrido bebê, subitamente em choro contínuo, suor frio e pele azulada, consequente a invaginação intestinal aguda. Pelo diagnóstico preciso e rápido, pudemos resolver o caso sem apelar para cirurgia.
Vendo-os ou com eles interagindo, a maior recompensa que pode receber o médico no exercício de sua profissão.
(1) Silva, Gilles C. M. - Suplemento Cultural da Revista da APM, dezembro 2018
Edgard Steffen é médico pediatra e escreve aos sábados neste espaço -- e[email protected]