Remédio da Discórdia
Crédito da foto: Miguel Medina / AFP
Edgard Steffen
Depois de muita controvérsia, para encerrar a polarização o Presidente do Conselho Federal de Medicina decidiu autorizar o uso da cloroquina nos casos de Covid19 (abril, 2020).
Entre os fatores que determinaram a queda do Império Romano, doenças epidêmicas fizeram sua parte. Não bastassem as bexigas (varíola) e o sarampo, havia a “febre romana” ou “palustre”. Desta culpavam emanações dos pântanos que existiam entre as colinas de Roma. Do mau ar veio a designação “malária”, que nosso povo conhece por “maleita”. As febres terçãs¹ já eram do conhecimento de Hipócrates. Somente no século 19 a Medicina conheceu o agente causador (Plasmodium) e o transmissor (mosquitos Anopheles).
O primeiro remédio -- chá feito com a casca da Chinchona officinalis² -- foi trazido pelos colonizadores do Novo Mundo (Peru, 1633). O chá e o pó amargo feito com a casca da chinchona mostraram-se eficazes no tratamento das febres em geral e da febre romana em especial. Da planta sul-americana foi isolado o quinino (1820). O alcaloide foi largamente usado pelas tropas espanholas para curar ou prevenir a malária, durante a guerra Hispano-americana. Do uso resultou grande contingente de surdos entre os combatentes.
A cloroquina foi descoberta (1934) por Hans Andersag nos laboratórios Bayer (Alemanha). Abandonada pelos seus efeitos tóxicos, foi “ressuscitada” e aperfeiçoada pelos americanos que a utilizaram nas batalhas em áreas malarígena da África e Ásia.
Dr. Mario Pinotti, nascido em Brotas (SP) em 1894, formado em Farmácia e Medicina, ademarista roxo, ocupou o Ministério da Saúde no governo JK. Impressionado com a elevada incidência de maleita na região Amazônica, propôs método simples de profilaxia coletiva para aquela Região. Parecia solução para vencer o impaludismo em áreas desprovidas de recursos médico-hospitalares. Assim como obrigatoriamente se acrescenta iodo para prevenir o bócio endêmico, acrescentar-se-ia cloroquina ao sal de cozinha a ser consumido pela população residente na zona malarígena. No “Método Pinotti” o teor do fármaco não alterava a palatabilidade do tempero universal (sem intenção de trocadilho), mas era suficiente para impedir a parasitemia. A Câmara dos Deputados propôs ao Comité de Seleção do Nobel 1959 o nome do ministro brasileiro para o Nobel de Medicina. Não deu certo: nem alcançamos o prêmio nem vencemos a malária. As cepas de Plasmodium falciparum (causador da malária terçã maligna) tornaram-se resistentes à cloroquina e derivados. Como de costume, aproveitadores, na vigência da obrigatoriedade do sal de Pinotti, encontraram um jeito de levar vantagem. Contrabandeado pelos espertalhões e vendido no mercado paralelo, o sal sem cloroquina virou negócio rendoso na Amazônia durante a vigência da lei do sal cloroquinado.
Atualmente, cloroquina e hidroxicloroquina são usadas no tratamento de doenças autoimunes (artrite reumatoide e lúpus). Na maleita, a indicação restringe-se apenas em associações com outros quimioterápicos (pirimetamina e sulfas de ação lenta).
Não existem pesquisas que comprovem de forma cabal se a velha cloroquina ajuda na cura do Covid19. Quando alguns a indicaram o esperneio foi geral. Manifestações pró e contra agitaram mídia e redes sociais. Verdadeira guerra entre cloroquinófilos e cloroquinófobos.
Nas guerras deste insensato mundo, cada país envolvido investe no arsenal bélico e, paralelamente, na medicina aplicada à sobrevivência das tropas. Como bem comparou o Secretário-geral da ONU, a luta contra o coronavírus assemelha-se a uma conflagração mundial. A esperança é de que o clima de guerra apresse a gênese de vacina e medicamentos realmente efetivos. E que os espertalhões de plantão não usem nosso pavor para aumentar o lucro político ou financeiro.
1-Crises febris a cada 48 horas
2-Arbusto da família das rubiáceas, mesmo grupo do café
Edgard Steffen é escritor e médico pediatra. E-mail: [email protected]