Recreativo em ritmo de saudades
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Edgard Steffen
Clube União Recreativo vai fechar sua sede no centro
(Manchete do Cruzeiro do Sul - 17/09/2020)
Ao ler a manchete estampada na página frontal do Cruzeiro, vieram-me à mente os versos de Chocolate e Elano de Paula. Saudade torrente de paixão, emoção diferente /Que aniquila a vida da gente
Sempre estudei ouvindo música. Quando cheguei por aqui, minha preferência era música americana e clássicos populares de fácil compreensão. Mas ouvia de tudo. Em agosto de 1950, a “Canção de Amor” era a campeã das paradas de sucesso. Graças à voz forte, afinadíssima e de agradável timbre, de uma cantora até então conhecida apenas no circuito do samba, dos dancings e boates no eixo Rio-São Paulo.
Sorocaba, com suas ruas estreitas e casarões antigos, parecia escura e feia aos meus olhos adolescente. Não demorei sentir que oferecia lazer semelhante às cidades onde eu havia morado. Só que em ponto maior e melhor. O coração da urbe pulsava. Havia o footing, serviço de alto-falantes, bares e restaurantes, dois cinemas e três clubes, além do Gabinete de Leitura e os templos centrais das igrejas católica e protestante.
Matriculado na faculdade, ciente de que ficaria por estas paragens por, no mínimo, seis anos, escolhi o Recreativo para associar-me. O clube era movimentado, ponto de encontro de jovens, local de brincadeiras dançantes. Tinha até sala de televisão ligada em programas de maior sucesso. Namoro peripatético era próprio daqueles dias. Quando Adélia e eu nos cansávamos, o Recreativo era nossa pausa até a hora de deixá-la à porta de sua residência.
Durante muitos anos participamos das promoções, palestras e conferência, jantares de clubes de serviço e casamentos. O ato solene de instalação definitiva do Rotary Clube de Sorocaba-Leste foi realizado no salão do Recrê.
No salão principal adaptado para teatro, pudemos assistir “Zoo History”, de Edward Albee, contracenado pelo Waldo Fazzio e Antônio Mattos Fontana. A peça de Paulo Zinkel “O efeito dos raios gama sobre as margaridas do campo” reuniu três gerações de atrizes da mesma família Eleanor Bruno (avó), Nicette (mãe), Beth Goulart e Bárbara Bruno (netas) no palco do Recreativo. Júlio César -- vencedor do Prêmio Maior do Teatro Amador no Estado de São Paulo -- estrelado por Pedrinho Salomão, Gileno Gracco Antunes, Antônio Fontana e outros que me fogem à memória, encheu olhos e estufou peitos dos sorocabanos. Nada a dever a grupos profissionais.
No clube que vai ser desativado pudemos ver o simpático Glenn Ford e a bela “La Violetera” Sarita Montiel, no lançamento do filme sorocabano “Não matarás!”. Também ali se apresentaram grandes cantores da época. O boêmio Nelson Gonçalves, o americano de voz suave Johnny Mattis e o Rei do Bolero Gregório Barrios, espanhol radicado no Brasil.
Entre cantoras, destaque para Elizeth Cardoso (1920-1990), musa da Bossa Nova desde o lançamento do álbum “Canção do Amor Demais” com músicas de Tom e Vinicius (1958). Fui assistir à sua apresentação no Recreativo. Observei-a bem de perto, junto à entrada do palco. Muito bem maquiada, penteado impecável, trajava um caftan longo que parecia elevar sua estatura. Em nada lembrava a suburbana pobre que trabalhara desde menina -- balconista, cabeleireira, operária -- para ajudar no orçamento familiar. Não lia pauta, mas foi escolhida para cantar as Bacchianas de Villas Lobos no Teatro Municipal.
No palco, expressão corporal majestática de quem domina a profissão. Seu talento iluminava fosse uma escura boate ou uma grande sala de espetáculos. Microfone na mão, separava bem as sílabas e tinha jeito próprio de emitir os erres sem o exagero dos cariocas. O gingado do corpo era mais parecido com marcação rítmica que rebolado vulgar.
Este 2020 marca o centenário de nascimento da magnífica intérprete de nosso cancioneiro. Levou-a um câncer gástrico (descoberto em 1987 durante temporada no Japão).
Do Recreativo Central, mais um vazio no coração da cidade. De Elizeth Cardoso, discos que aniquilam saudades da boa música brasileira.
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Edgard Steffen é escritor e médico pediatra - e-mail: [email protected]