Recesso em excesso
Lia Canineu
A sensação era de férias, imprevistas, mas igualmente queridas. O que fazer, me ocorreu a caminho do interior aproveitaria o episódio para passar um tempo com meus pais. O que fazer com todo este tempo concedido assim tão gratuitamente, tão livremente? Embora não admitisse a resposta era óbvia: nada! Era tudo isso que eu gostaria de fazer depois de um intenso período de ensaios, um monte de nada!
A princípio, quando tudo não passava de um incidente com data de expiração, viver o ócio seria um mantra, resolvi encarar como uma oportunidade!
Ah! Suspirei aliviada -- uma semana inteira de domingos! Tudo bem, três semanas no máximo... Disseram que paramos por tempo indeterminado, mas não deverá demorar muito para voltarmos à ativa, conclui. E tendo em mente o ineditismo da situação segui as primeiras semanas como quem estava descansando. Levei o cachorro passear no condomínio, dormi até tarde, acordei mais tarde ainda, coloquei séries e filmes em dia!
Não demorou muito para descer a ladeira da consternação -- Gente, mas o ser humano é inacreditável. O QUE É QUE ESTÁ ACONTECENDO? Como chegamos a isso?
No início do segundo mês fui tomada por uma inquietação, um impulso criativo, uma necessidade súbita de produzir, de me movimentar por algum propósito, de ser útil por uma causa, por algo ou alguém -- Quero mas não quero dizer que sinto falta da correria do trabalho -- Se me ocupasse certamente tudo passaria mais rapidamente... -- Se eu... Quem sabe se eu... Foi quando comecei então a pintar, 1, 2, 3... 25 panos de prato. Então aprendi a fazer crochê... Muito difícil, pausei. Escrevi páginas matinais, resgatei livros. Dei um tapa nos armários, gavetas e estantes. A sala de televisão pedira um novo visual... poltrona pra lá, tapete pra cá, então o quarto, de novo a sala...
Uau, três meses se passaram! -- Isso nunca vai terminar! Dependemos de um indivíduo que usa a máscara na testa, isso quando a usa! Definitivamente estamos perdidos... Foram dias suspirando, de cara feia, um mau humor que tirou o melhor de mim e se prolongou por mais tempo do que me atrevo a dizer. Chorei. Sofri por mim, pelos outros... Pelo mundo.
Passei por fases, como quem vive o luto. Neguei, tive raiva, barganhei, chorei. Agora deveria estar aceitando. Talvez seja essa a fase mais difícil de todas dada as circunstâncias. Será que aceitar quer dizer desistir? Seria desistir deixar de esperar pelo melhor? Por uma cura? Por um milagre? Por alguma boa notícia que seja.
Ora, que ousadia a minha usar o luto como metáfora quando tantos estão literalmente perdendo os seus... Perdoe-me a incoerência, imersa nessa inconstância me falta vocabulário decente.
Ninguém nos preparou para enfrentarmos uma pandemia, muito menos para vivermos uma, se é que me entende. Seja como for que estiver lidando com este momento, lembre-se que estamos juntos. Alguns mais positivos e esperançosos, alguns ainda negando a gravidade da situação; já outros me surpreende a força que os move em frente. Cada um a sua maneira, porém, de máscara, munidos de álcool gel, devidamente distantes, sorrindo com
os olhos e juntos!
Lia Canineu é escritora e atriz nascida em Sorocaba.